Zeca Sapateiro: profissional por vocação

Montes Claros-MG – Zeca Sapateiro foi um talentoso profissional do ramo. O “foi” é em função dos anos em que o conheci, época da minha fase criança. Se ainda vive, e espero que sim, deve estar perto dos 80 anos, ou acima disso.

Sistemático, nem por isso Zeca deixava de ser extremamente educado, recebendo-nos sempre com atenção, mesmo sabendo que não tínhamos nenhum calçado para consertar. Na verdade, sua inteligência nos atraía, espontaneamente imbuído de tiradas sagazes.

Eu o comparava ao cantor Juca Chaves, semelhança incrível. E o violão, outra coincidência bacana, tornou-se seu companheiro frequente. A voz macia e anasalada de Zeca se igualava também à do cantor seresteiro.

Ao cantar, ele dilatava visivelmente as veias do pescoço, ruborizando as faces claras em busca de entonação perfeita. Os acordes do violão reluzente complementavam esse show solitário.

Zeca Sapateiro podia ser qualificado de sujeito estranho, para não dizer misterioso: depois que encerrava o expediente, adentrava calmamente pelo longo corredor de terra batida da sapataria onde morava, na Rua Altino de Freitas. Construção à base de taboca com fios trançados, de característica paupérrima.

Após abandonar seu posto diário de conserta-sapatos, ele desaparecia na penumbra reinante nos fundos do velho imóvel. Muita curiosidade nossa em conhecer os bastidores daquela sapataria, saber o que Zeca fazia lá, depois do expediente, em meio à quase escuridão alquebrada por velas, à falta de luz elétrica.

Não foram poucas as vezes em que quase nos expulsou ao perceber nossa relutância em ir embora, dizendo que precisava fechar. Já recolhia rápido alguns calçados do balcão, dando a entender estarmos sobrando ali.

Geralmente, os curiosos mais presentes nessa sapataria eram eu e meu mano mais velho, moradores próximos. Muitas perguntas, rebatidas às vezes com outras pelo intelectual do bate-martelo em sapatos. O “por que-vocês-querem-saber” se interpunha inflexível na nossa artilharia curiosa.

Zeca mantinha higiene fenomenal com seu corpo, apresentando-se sempre bem-vestido e perfumado. A metros de distância, já exalava suave odor de perfume, como se tivesse saído do banho.

Já os cabelos, longos e em cachos dourados, denotavam tratamento especial à base de xampu e óleo. Uma figura, Zeca!

Suas mãos, apesar do ofício que desempenhava, eram igualmente delicadas: cutículas aparadas e base tímida, em tonalidade rósea.

Com essa trôpega convivência, descobrimos que Zeca não ficava recluso à sapataria durante os finais de semana e feriados: vestia-se de forma caprichada e saía para andar ao redor da Praça da Matriz, cumprimentando a todos cordialmente.

Ele adorava usar cachecol nos dias frios e roupas de cores extravagantes, além de cortes que fugiam à moda vigente. Muita gente passou a imitá-lo.

Na verdade, ninguém contestava que Zeca representava o lado inteligente de uma sociedade financeiramente destituída de valores.

Não deixei de imaginar que Zeca talvez passasse frio dentro daquelas paredes corcundas pelos anos de construção. As tabocas expostas sugeriam visões sinistras a quem acaso observasse melhor.

Zeca dispensava o uso de rádios de pilha, optando por uma velha vitrola. Nela ouvia óperas e outras composições de gênero distinto, preferencialmente italianas. Tornava-se maestro ao escutar tais músicas, gesticulando sem parar.

Interessante observar o disco vinil meio saltitante em rodopiado veloz, enquanto a agulha ia rebuscando caminhos estreitos, determinada a produzir sons perfeitos…

Os olhos do enigmático sapateiro viajavam então solenes ao bebericar cada um dos acordes liberados por instrumentos invisíveis, expostos magicamente pelo aparelho ultrapassado, de aspecto rudimentar.

Pelo que pude concluir, Zeca não se importava necessariamente com a qualidade dos rasgos da agulha no disco de vinil, desde que a obra fosse conduzida até o final.

Outra característica flagrada no sapateiro era a de ouvinte ocasional, ou seja: escutava apenas o que lhe interessasse, fazendo-se de surdo para as demais coisas.

Nesses instantes, seus olhos claros – aliados aos imensos cílios, idênticos aos de um suíno – entremeavam piscadelas de devaneio descomprometido às visitas…

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No dia em que asfaltaram a Rua Altino de Freitas, Zeca evidenciou claro aborrecimento. Não entendi o motivo. Ficou postado durante bons minutos em cima da calçada, observando a máquina preparar o terreno para receber camada asfáltica.

Já asfaltada, a rua ficou bem acima da casa de Zeca, situada num nível inferior. Sua sapataria, naquela nova situação, foi amordaçada de vez, tipo um elevador estacionado entre dois andares.

Faz uns 58 anos que não vejo o amigo Zeca Sapateiro, daí ter batido saudades e me lançado ao notebook com a intenção de homenageá-lo. Soube que nem há mais sinal de sua velha casa-sapataria…

Zeca foi personagem interessante da cidade e de minha vida, posso dizer seguramente: aprendi muito ao bisbilhotar seu cotidiano. A curiosidade criança foi profícua, nesse caso.

Um dos maiores ensinamentos repassados pelo inteligentíssimo Zeca Sapateiro é que a simplicidade humana pode ocultar valores incomensuráveis. Tanto que quando escuto dedilhar manhoso de violão e a voz anasalada do imortal cantor Juca Chaves, sua imagem carismática vem à minha mente de imediato.

Por João Carlos de Queiroz

 

 

 

 

 

 

 

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