Um pagodeiro que o diabo adoraria!

“Bum… bum… bummmm..

Cuiabá..O som ritmado de timba adentra nos corações saltitantes de fôlego pela folia gratuita. O “bate-pés” na velha Orla do Porto começara antes da “alvorada” quente de um domingo comum, após a sesta de almoço. Bem próximo dali, metros abaixo, o glorioso rio, que ainda sacia a sede de milhares – e que deu nome à capital mato-grossense –  suspira tímida mansidão sonolenta.

Um leve vapor sobrevoa a superfície indefinida de suas águas poluídas, bafejando os ares de restos mortais de peixe. Há quem se sinta inebriado em aspirar tanta carniça, como se fosse pura essência ambiental…

Ainda é possível captar vultos persistentes em pescas solitárias no leito moribundo do tradicional rio. Jornada intensiva de provedores de lares decrépitos e de abrigos esporádicos nas ruas. Muitos deles jazem em dormitórios de aconchego duvidoso, ao relento, no entorno da Praça do Porto.

Forçando-se a imaginação, também dá para “escutar” gritos indistintos de pequeninos esfomeados. A fome tem voz e linguagens próprias. Outras sombras humanas transitam a esmo nas margens desse “goteja água potável”, como mortos-vivos. De há muito o manancial perdeu sua imponência de vida, e agora quase se arrasta entre pedras e em meio a lixo pródigo. Não há futuro algum para o bravo rio centenário, hoje montaria de dejetos rumo ao Pantanal mato-grossense. É um guerreiro traidor de sua natureza, pois envenena forçadamente quem deveria proteger…

Mas é domingo, dia de pagode… O Rio Cuiabá é apenas mais uma vítima do processo de degradação imposto pelo capitalismo selvagem. Desde que as pessoas se divirtam, não importa se ele está perecendo, debatendo-se em infortúnios irresponsáveis impostos pelos humanos…

Lá em cima, nas barrancas desnudadas de verde, igualmente assoreadas pelo descompromisso público de preservação ambiental, o agito insosso e retumbante de um animadíssimo pagode prossegue firme. Não se sabe exatamente como, um cavaquinho ecoa nítidos acordes sobre aquele inferno festivo. Sobrepõe-se altivo ao ritmo alucinado de dançarinos, grupos em legítimo desvario alcoólico. Cada acorde do cavaquinho emite dengoso som de soberania ambiente, apesar da miscelânea de outros sons, de notória intromissão prepotente…

Admirável como os arranques agudos do pequeno instrumento abrilhantam o requebrado suado de jovens e adultos, a ponto de quedar limitações de pagodeiros ostensivamente adentrados na terceira idade. É mais ou menos o caso do incansável Robinho, físico elegante aos 50 e tantos anos. Suas gargalhadas denotam fôlego criança, de disposição invejável para tardes e noitadas sem prazo de finalização. O Rio de Janeiro testemunhou o ritmo incansável desse seu filho…

____________________________________________________________________________________

O barzinho Orla registrava extraordinário movimento insosso aos sábados e domingos, fechando a avenida frontal. Ninguém imaginava que uma reforma pública trucidaria, anos depois, esse ambiente controverso de música e estardalhaço popular. Havia por lá outros estabelecimentos do gênero sem meio termos de legalização, inclusive com postes de luz entre as mesas…

____________________________________________________________________________________

Também naquele domingo, hoje distante no calendário do tempo, alguns pagodeiros exalavam odores desagradáveis ao olfato geral, parcialmente neutralizados pela euforia momentânea. O único desejo era desfrutar, ao máximo, dos ocasionais prazeres da vida.  Robinho, com certeza, higiênico ao extremo, deveria estar destilando perfume além da conta, apesar da insistência do suor em escorrer no seu rosto moreno e nas axilas, inundando a camisa abrilhantada de cores.

Podia imaginá-lo assim lá na Orla. Não seria a primeira vez que nos encontraríamos num lugar tipicamente pagodeiro…

Os amigos mais chegados dizem que Robinho é uma figura excêntrica a ser estudada, pois simboliza personagens evoluídos, típicos príncipes de festas. Em síntese, Robinho é o carioca que veio ser feliz em Cuiabá. E conseguiu. Boa-praça. Menino querido de quantos o conhecem. Um papo pra lá de encantador, interessante, inteligente. Um minuto de prosa é suficiente para que ele convença quantos o ouvem de que escolheu certo ao agir conforme sua intuição.

Robinho ainda canta e toca maviosamente seletivo elenco da MPB, pouco ligando se alguém refuta sua preferência musical em prol do som escandaloso das caixas pagodeiras. “Meu bem querer…” – entoa feliz. Mas também curte um bom pagode e sacode as ancas magras e pernas elétricas, enquanto abre sorrisos carnavalescos. Música é a cocaína desse carioca cuiabano…

Robinho é um dos que marcaram presença semanal nas dependências da antiga Orla Pagodeira. Ali foram concebidas histórias vulgares ou não, mas que que continuam sacolejando as saudades dos ex-frequentadores. Sem pudor, as moças ensaiavam fogosas evoluções dançarinas, retorcendo quadris sinuosos e disformes pela ação implacável do tempo e da própria batuta farrista. Pagode implode até vaidades…

NO MEIO DA ORLA… Naquela tarde pachorrenta, adentrei ali sem entender o porquê de estar num lugar sem nenhuma simpatia receptiva. Fui lá a convite do simpático Robinho. Arrependi-me logo na entrada: visível a hostilidade em olhares furtivos de muitos refestelados em cadeiras e banquinhos; melhor fingir que não percebi nada… 

“Gostaria que me pagasse um trago, meu lindão”, é o convite atrevido de uma loura oxigenada, hálito infestado de álcool e cigarro. “Daqui a pouco eu volto, princesa”, respondi mecanicamente. Ela percebeu o tom de desinteresse, e fez beicinho ofendido. Então saiu rápido, à procura de outra presa para bancar seu alcoolismo.

Mnhas narinas foram invadidas de um odor apimentado de petiscos. Mistura nauseante, que emprestou sensações distintas nos mais sensíveis. O ‘esfrega-esfrega’ entre moças/rapazes, e também rapazes/rapazes acontecia naquele domingo sem cerimônias. Tudo natural…

Marmanjos machistas, outra observação, bolinavam saliências trêmulas nas curvas reconchudas das gatas em trânsito requebradeiro. Umas protestavam, outras ignoravam, e até saíam sorrindo. Certamente, gostaram…

Era esse o quadro interno instalado no extinto barzinho Orla, reduto preferencial do pagodeiro Robin Hood. Sujeito insistentemente otimista, sempre a postos para responder ao assédio feminino, mulherengo que é. 

O mais difícil era andar entre aquele emaranhado de estranhos em pé de briga. Ao iniciar a trajetória interna entre as mesas, à procura do amigo, fui surpreendido pelo arroto escandaloso de um brutamontes gordo, jato estomacal disparado sem cerimônia alguma. Os demais ocupantes da mesa aplaudiram esse gesto asqueroso, certamente por medo do gigante ou falta do que fazer. O olhar arrogante do mal-educado denotou tentativa de aberta provocação. Fiz de desentendido…

Hesitei sério em passar a seu lado. O idiota nem se deu ao trabalho de varrer a farinha catarrenta do descomunal bigode mexicano, abrindo o corpanzil de suíno em ponto de abate no pequeno espaço. Imaginei que me aplicaria uma rasteira ao passar por perto, último recurso de conclamação de briga. Afastei-me prudentemente do provocador…

Robinho logo me viu e indicou uma mesa, praticamente entulhada num canto daquele inferno pagodeiro, acesso por uma escadinha estreira. Ali, abrindo os braços, ele me apresentou toda a “beleza” da Orla, citando a proximidade do rio fedorento como uma das virtudes do lugar.  Percebi que seus olhos brilhavam de êxtase, acrescido de mais sorrisos escancarados e gritos ocasionais a amigos próximos, tentativa frustrada de diálogo.

Aquilo tudo se constituía num baco-baco intempestivo, impossível que alguém gostasse de ficar confinado em tal turbilhão humano. Robinho e outras dezenas adoravam, óbvio!

Também na mesa, estava uma morena que Robinho disse ser sua “amiga”, informação não aglutinada pela intimidade evidente de ambos. A sujeita era pinguça profissional, virava copos e mais copos de cerveja um atrás do outro. Imaginei que já tomava um pensando no próximo, pois não tirava os olhos da garrafa. “Esse tonel humano aí não tem fundo, está furado”, concluí.

A morena sorria languidamente ao apreciar toda a movimentação ao redor, emanando luxúria sensual. Robinho compartilhou fácil de sua alienação cervejística, emoldurando-a de atenções especiais. “E ainda querem que acredite que são só amigos”, outra alfinetada mental. – 

Meia hora depois eu já me despedia meio sem-graça, com sorrisos que tentavam expor minha “felicidade” de ter estado na famosa Orla. Nunca soube se convenci os dois, pelos olhares desconfiados que me direcionaram, algo desapontados. “Mas nem acabou de chegar e já quer ir…” – queixume educado da moça. “É que tenho um compromisso”, desculpa esfarrapada.

Na realidade, o compromisso era comigo mesmo: saí quase correndo dali, em busca de paz. E foi assim que acenei realmente feliz, já do outro lado da rua, para o casal pagodeiro. Robinho ainda fez um gesto de convite esperançoso com as mãos, para que voltasse depois…

(João Carlos de Queiroz, jornalista)

 

 

 

 

Comentários estão fechados.