Na Escola Normal, teve cineminha que virou terror, após a exibição…
Transcorrido tanto tempo, imagino que essa tradicional predileção da Escola Normal Oficial por filmes preto/branco, na verdade tinha uma única finalidade: economia. Não necessariamente por filmes mudos, pérolas cinematográficas nacionais ou pós-oceano, mas os bons enlatados alusivos ao Velho Western, Oeste americano (“RIN TIM TIN”, “BUCK JONES”, ARIZONA).
O homem das selvas, TARZAN, detinha preferência maciça do alunado. Algumas produções piratas também se acoplavam ao elenco exibidor. Antes mesmo de o projecionista retirar os rolos de película das caixas, já sabíamos: “Lá vem filme preto/branco”.
Hão de supor, e é previsível que pensem assim: “Isso devia ser muito chato”. Pelo contrário: era bem legal! Nós, estudantes, comemorávamos o fato de, devidamente autorizados, cabular aulas.
Melhor explicando: qualquer filminho sobrepujava a chatice das aulas. Portanto, o mais importante desse show projetado, independente do seu conteúdo, residia nas “férias de horas escolares”.
Naturalmente, na condição de pré-adolescentes, o gosto aventureiro extrapolava o menor senso crítico; e torcidas [divididas] se formavam após o projetor IEC iniciar sua mágica projetada.
Na sequência, começaram a exibir filmes coloridos, até que enfim!
Relembrando isso, quase ouço a gritaria eufórica dos colegas aplaudindo a coragem de Peter Pan e Sininho; outros, acreditam?, aplaudiam é o malvado capitão Gancho.
Outras produções evidenciaram a extrema crueldade da pirataria em alto mar, incluindo abordagem a navios de passageiros e saques sangrentos. As coleguinhas mais sensíveis, as medrosas dos ratos, choravam copiosamente. Atentos, os professores frisavam ser tudo de mentirinha, temendo traumas, e elas se recompunham.
Daí que o cineminha da escola se tornou uma atração irresistível. Ouvir aquele aviso, via megafone, para nos dirigirmos ao auditório, passou a ser comemorado efusivamente.
“Dirijam-se todos ao auditório após o recreio. Teremos cinema lá”.
O estardalhaço comemorativo do alunado sempre se refletia vibrante nas paredes de concreto. Precisavam ver o corre-corre de sobe/desce escadas para pegar cadernos nas salas. Depois do filme, fim das aulas.
Segunda Parte…
Só não gostei de ter insistido para assistir filmes no horário noturno: logo na primeira vez, protagonizei inesquecível agonia viajante ao retornar pra casa, a bordo da velha bicicleta Caloi.
O filme acabou perto da meia-noite, e qual não foi minha surpresa ao pegar a surrada Caloi no pátio, decidido a pedalar até o bairro Edgar Pereira. Que frio tenebroso!
Deparei-me com uma cerração geladíssima. Cismado, conduzi a magrela pelo piso de paralelepípedos, galgando a frágil montaria ciclística ao chegar à avenida. Prospectei problemas à frente…
Seria um trajeto longo, solitário; de impacto, desenrolou-se automático filminho consciente na minha objetiva mental, sendo picotado por rajada traiçoeira de vento. Poderia chover, melhor me apressar…
Conforme previra, tudo se apresentava deserto demais, avenida afora; sequer pios de coruja alquebravam a paralisia repentina da cidade…
Estranhamente silencioso, um grupo de alunos saiu rápido pelo portão principal, dissipando-se de forma aleatória entre as sombras de ruas mal iluminadas.
Observando a dispersa trajetória desses estudantes, tive a impressão de que se transformaram em zumbis. Isso mesmo! Pela movimentação ágil de suas figuras difusas, pareciam ter sido absorvidos magicamente pela cerração. Melhor não ficar incutido com isso.
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Ajustei os óculos firmemente na nuca; tornara-se um dispositivo útil não apenas de leitura, mas também de proteção ao frio invasor da madrugada.
O projecionista foi a última pessoa que vi passar pela calçada frontal da escola. Metodicamente, acomodou os equipamentos de cinema, tela e projetor 16 mm, marca IEC, no bagageiro do seu VW Brasília. Nem seguiu pela avenida, adentrando por rua Transversal. Devia morar ali perto.
Enfim, pés nos pedais, firmando equilíbrio desconfiado, dei início à batuta de pedaladas pela avenida…
Minha bicicleta não se fez de rogada, respondendo veloz às enérgicas pedaladas: nem vi como transpus a Avenida Mestra Fininha, sentindo o nariz congelar pelo vento sibilante da descida da escola, felizmente asfaltada. Levei tombo na época em que era cascalhada.
Calculei que aquele percurso levaria cerca de 20 minutos. Cabia pedalar mais rápido…
Quanto mais pedalava, mais distante parecia estar meu doce lar, a fim de me aconchegar na caminha quente. Podia estar lá horas antes, acaso não tivesse ido ao cineminha. Um sentimento de arrependimento bateu forte.
Realmente, foi muita imprudência ir assistir filme tão longe, sob o bafo gelado do mês junino. Enfim, agora era tarde para reclamar.
Resmungona, a Caloi rangeu cansaço preocupante, estalando toda, mas sequenciou sua missão de me transportar.
Se continuasse nesse ritmo, logo chegaria ao Edgar Pereira, à Rua Cravina. Devia estar também tudo deserto por lá. Torci para encontrar o portão aberto; caso contrário, teria que acordar meus pais.
O trajeto plano da Avenida Coronel Prates deu trégua no gira-pedais, momento em que um fungado esquisito, mais se assimilando a roncado de bicho graúdo, ecoou perto da orelha esquerda.
]Senti imediato mal-estar, seguindo-se a eclosão de calor corporal, em contraste à baixa temperatura externa.
Aquilo seria exatamente o quê? – pergunta gerada automaticamente pelo medo.
Mais pedaladas aconteceram, incentivadas pelo pânico de estar sendo seguido por indesejável criatura.
Pude ouvir o atritar dos pneus da Caloi nas ruas então empedradas que levavam aos casarões centenários de MOC. Praguejei pela imposição de tanto silêncio; tal quietude sublinhava cumplicidade a apuros distintos. Que necessidade de ver gente nas ruas! Tornara-me o único transeunte desse tabernáculo habitacional.
Nem cães vira-latas surgiram durante o infeliz percurso. Mais uns minutinhos e chegaria na Praça da Matriz, a área dos casarões. Alguns davam calafrios…
Isso não tardou a acontecer: desci pela Rua Dr. Veloso a pleno, no intuito de afastar dos ouvidos as rosnadas invisíveis que me perseguiam.
Deduzi, ao chegar na Matriz, não ter sido uma boa ideia: a praça inteira parecia cemitério de filmes de terror, igualmente envolta em manta neblinada. Algumas roseiras transmutavam figuras ameaçadoras. Lembrei-me dos estudantes zumbis…
Entrei apenas por minutos na região dos casarões, optando por cortar caminho pela Vila Brasília, via Rua Cel. Celestino.
Na verdade, não queria circular internamente pelas catacumbas que os casarões caracterizavam. Já ouvira casos de assombrações . Relatos de que antigos coronéis costumavam ficar postados nos janelões após certo horário da madrugada. Melhor que estivessem dormindo em seus túmulos…
A subida da ponte que separava a Rua Cel. Celestino da Vila Brasília foi feita agilmente. A Caloi continuava a corresponder, entendendo a necessidade de chegar logo em casa.
No alto da ponte, nem olhei para as laterais, sentindo o bafo de esgoto do Rio Viera, ensombrado pela noite e cerração. Pelo menos assim esconderia seu lixo.
– ARRRRRR… – ARRRRR…
Novo rosnado quase me desequilibrou, e a descida da ponte foi mais veloz. Passei pela Vila Brasília sem reduzir o ritmo das pedaladas, acompanhado pelo rosnado daquela coisa perseguidora.
Foi assim que o bairro Edgar Pereira me recebeu. Mal vi o campinho de futebol ao lado do Grupo Quita Pereira, e a Caloi escorregou na lama que sobrara da última chuva. Há tempos prometiam asfaltar nossa comunidade.
FINALMENTE EM CASA!
Grosseiro, não tive a menor complacência com minha companheira ciclística ao chegar à cerca de casa e forçar o portão, temendo encontrar cadeado: a bicicleta foi jogada de lado.
Felizmente, meus pais tiveram o cuidado de deixar o portão aberto. Entrei afoitamente, e por pouco não esqueci a bicicleta do lado de fora. Puxei-me de qualquer jeito, jogando-a na grama do quintal. Meu desejo era um só: entrar em casa, livrar-me daquele ronronado medonho.
A porta envidraçada se constituiu numa passagem de segurança para pôr fim ao terror vivenciado desde que saí da escola. Ao girar a fechadura freneticamente por duas vezes, ainda ouvi mais rosnados de urso, agora no alpendre…
João Carlos de Queiroz, jornalista
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