Sugiro que todos façam curso de pilotagem com Ari, no Pantanal…

Quem assiste à novela Pantanal, excelente produção da Globo (sou um deles), observa algumas coisas que passam ao largo de quem não tem maior conhecimento sobre o setor aéreo e a própria carreira de aeronauta. Valendo-se disso, a história pantaneira global prossegue normalmente.

Minha modesta opinião é baseada nas experiências de ex-presidente de escolas privadas de pilotagem (Aeroclubes de Montes Claros e Várzea Grande) durante anos. As exigências para ser piloto não são assim tão fáceis, feito balinha doce de criança, isso conheço muito bem.

Na transcurso da trama novelística, há claro desmerecimento da profissão de piloto, rebaixada meramente à militância de peão 100% ignorante. É o caso do personagem do humilde Tadeu (José Loreto), filho bastardo de José Leôncio, esse último interpretado pelo fenomenal ator Marcos Palmeira.

Vamos às controvérsias mais evidentes dessa novela, pois confrontam a realidade de quem deseja ser piloto de avião:

  • Na novela, Juventino, outro filho de José Leôncio, personagem de Jesuíta Barbosa, resolve tirar brevê (licença de pilotagem de aviões). De imediato, já contrata Ari, empregado do pai, para ministrar aulas de voo;
  • Até então, pelo que o roteiro novelístico dá a entender, Ari é somente mais um dos funcionários de José Leôncio, atuando na condição de piloto, profissional sempre a postos, baseado no aeroporto campo-grandense;
  • Dali, via rádio, Ari estabelece contato diário entre o patrão e as demais empresas do grupo, municiando-o de informações. Nunca foi mencionado que fosse instrutor de voo, ou que ali funcionasse escola de aviação;
  • Pois bem: a partir do instante em que Juventino decide ser piloto, Ari já se desloca com um bimotor Sêneca ao Pantanal, passando a ministrar aulas práticas de voo ao rapaz sem a menor exigência burocrática.

*Detalhe: para voar, a maioria dos aeroclubes brasileiros exige que seus alunos tenham o Certificado de Capacidade Física e o Teórico em mãos.

  • Ari já aterrissa no Pantanal com um Sêneca caracterizado como aeronave de instrução. Fica, portanto, evidenciadas algumas dúvidas, a exemplo da real função de Ari na trama: se é piloto (empregado de José Leôncio) ou instrutor de voo credenciado pela ANAC (antigo Departamento de Aviação Civil);
  • Em nenhum momento, foi demonstrado que Juventino saiu do Pantanal para realizar exames médicos e as cinco provas básicas do Teórico, documentos essenciais à homologação da licença de pilotagem (brevê). Isso só aconteceu DEPOIS que ele voava solo (conduzindo sozinho a aeronave);
  • Como deseja operar o avião do pai, um bimotor Sêneca, Juventino precisaria também dispor de habilitação de multimotores e instrumentos, e não somente da carteira do PP (Piloto Privado), documentos essenciais à operação em aeroportos maiores;
  • Pelas regras aeronáuticas, além de estar de posse dos referidos documentos teóricos, é preciso realizar checagem prática com instrutor especializado na aeronave bimotor pela qual se habilita a voar, independente das horas voadas antes no aparelho em questão.

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Na novela, feliz da vida, Juventino voa e voa pelo Pantanal pilotando o bimotor, e ao solar o aparelho, decolando e pousando sozinho, finalmente vai a Campo Grande providenciar a documentação de praxe.

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Há quem pergunte se Ari, mesmo se fosse instrutor credenciado, poderia sair de Campo Grande para voar no Pantanal, ministrando instrução. Isso é possível, sim, se for habilitado para a função. Inclusive, o instrutor pode até realizar viagens entre os estados com seus alunos.

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*O grande deslize da novela, a meu ver, é sobre o humilde Tadeu, tachado o tempo todo de peão, apesar de pilotar aeronaves entre o Pantanal, Campo Grande e outros lugares.

Se Tadeu chegou a tal estágio técnico de conhecimento aéreo, de há muito deixou de ser ignorante, como o próprio tem frisado para Guta, sua amada, externando o mesmo aos colegas de fazenda.

Senão, vejamos…

  • Um simples peão, ponteiro de comitivas, não é capaz de entender o emaranhado de informações de um aparelho bimotor, levantar voo e aterrissá-lo seguramente.
  • Em síntese, um piloto não pode ser classificado de peão ignorante, sem querer desmerecer essa nobre categoria.
  • O correto seria frisar que o personagem Tadeu não é unicamente um peão, sem mínimo de conhecimento das coisas técnicas, mas, sim, um vaqueiro que aprendeu a pilotar e conhece e opera todas as regras que regem o setor aéreo.
  • Isso faria justiça à categoria de aeronautas; há muita diferença entre conduzir boiadas e máquinas aladas…

ENCERRANDO, também fica esquisito vermos um Sêneca decolando da fazenda pantaneira para as aulas de Juventino.  Na sequência do voo, já é mostrado um turboélice King-Air sobre a região pantaneira, cauda em T. Aeronave totalmente diferente do Sêneca.

A ideia da produção, óbvio, é sequenciar a tomada de decolagem, demonstrando continuidade da operação. Mas não precisavam trocar de avião. Mesmo porque essa mesma cena (do avião visto pela retaguarda) foi usada em outras tomadas na mesma novela, tornando-se repetitiva…

João Carlos de Queiroz, jornalista

*O autor reativou e presidiu o Aeroclube de Montes Claros-MG, fundando e presidindo o Aeroclube de Várzea Grande, em Mato Grosso. Foi aluno do Aeroclube de Lagoa Santa nos anos 80, entidade de instrução sediada no Aeroporto Carlos Prates, em Belo Horizonte-MG.

 

 

 

 

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