Sofrida viagem de “paus de arara” no trem azul…

Foi um convívio de forte impacto emocional acompanhar parte da trajetória aventureira de quem abandona tudo para fugir da seca e tentar uma vida melhor em algum outro lugar do País...

Por João Carlos de Queiroz – Por vezes, a bordo do trem azul, famoso “mastigador” de trilhos da antiga Rede Ferroviária Federal Sociedade Anônima (R.F.F.S.A.), pude observar o sufoco esperançoso de centenas de famílias. Em sua maioria, migrantes embarcados em regiões diversas dos rincões do Norte de Minas, principalmente oriundos do árido sertão, ao longo da divisa dos estados de Minas Gerais e Bahia. A pequena cidade mineira de Monte Azul convergia embarque maciço dos aventureiros.

Todos esses viajantes, percebia, estavam à procura de um lugar ao Sol, vida melhor; futuro centrado na desconhecida metrópole paulista, com dias à frente no batente dos trilhos. Não importava o quanto a viagem demorasse, ou mesmo as agruras do percurso: retomar a vida – sem a imposição da seca brava – já compensava tudo. Tratava-se de uma aposta sem volta, incluindo perda de imóveis, terras. Ninguém come pó quando tudo depende de água…

Essa famosa linha nordestina do trem azul teve seu auge de movimentação nos anos 70 e transcurso parcial da década política de 80, quando trucidaram a expectativa brasileira de ver Tancredo Neves, presidente eleito, ser empossado e subir a rampa do Palácio do Planalto. A ainda misteriosa morte do presidente eleito ceifou esse anseio de um Brasil melhor…

Créditos Youtube

Geralmente, eu embarcava em Montes Claros rumo a Belo Horizonte, considerada até hoje a “Princesa do Norte”, por ser a maior cidade da região. Mas, eventualmente, pude também embarcar em Janaúba (a 170 km de Montes Claros), quando ali estava a serviço. Um embarque temeroso, em função da conhecida precariedade da malha ferroviária, fator responsável por um sem número de descarrilamentos.

Podia-se ver, nas breves paradas do trem, pela retaguarda do último vagão, a situação caótica da surrada linha férrea, composta por dormentes (de madeira) apodrecidos, via de bitola estreita, somando-se à ausência de uma boa base de compactação de brita. Qualquer chuva deixava vácuos comprometedores sob os trilhos, que vergavam à força de centenas de toneladas. Nem todos os trilhos tinham cravos completos de fixação.

Os viajantes mantinham cândido ar de resignação esperançosa durante o percurso. Talvez traçando planos do desembarque em Belo Horizonte ou em São Paulo, o destino mais procurado. Alguns volviam os olhos sonolentos à paisagem em trânsito matraqueado, sacolejando talheres nos pratos de farofa. Mastigatório sem fim, alternado por um descascar igualmente ininterrupto de laranjas, bananas e outras frutas. A ansiedade presente, relativa ao amanhã incógnito, incitava isso…

Eu os olhava compadecido, pois sabia que aquela viagem tinha mais característica de fuga do que de qualquer coisa. Ali se reuniam adultos e crianças, acomodados em cadeiras de madeira, todos confinados num ambiente por vezes fétido, por conta de suor vencido; falta visível de banho dos embarcados há dias…

O trem azul chegava a Montes Claros apenas com os vagões de madeira, os descritos acima, de péssima qualidade. Quase chiqueiros humanos ambulantes. Os demais carros, poltrona leito/leito, 1ª classe, vagão restaurante, eram então incorporados para a continuidade da viagem até Belo Horizonte (de onde poderiam embarcar em outro trem, para São Paulo).

Sempre curioso, não poucas vezes visitei as oficinas da R.F.F.S.A., instaladas nos fundos do terminal de Montes Claros. Os vagões que seriam incorporados à composição baiana já ficavam prontos para engate, lavados e polidos, numa extremidade dos galpões gigantescos da empresa. Na fase de sonhos adolescentes, imaginava que eles tinham pressa em partir…

Também percebi uma coisa nas minhas viagens: quem embarcava em Montes Claros, acomodando-se nos vagões mais estruturados, luxuosos para a época, praticamente ignorava que a composição estivesse atrelada a outros carros de perfil empobrecido, acomodação vergonhosa de pessoas desprovidas de bens materiais.

Detalhe evidente quando todos se detinham cautelosos no vagão restaurante, divisor da ala social mais abastada e do setor de penúria total. O perambular de curiosos viajantes parava por lá. Quando muito, olhavam pela janelinha sambista do vagão próximo, tentativa de ver o que acontecia na ala “cadeiras de pau”.

Vez ou outra, os humildes “baianos” adentravam pelo vagão restaurante, imediatamente sendo analisados por dezenas de olhos discriminatórios. Vinham pedir água ou um pouco de sal, açúcar. Muita gente tampava as narinas quando eles passavam ao largo das mesas, simulando incômodo pela suposta fedentina humana.

Uma ocasião, apareceu por lá uma mulher gestante e maltrapilha, ventre bem avantajado. Arfava ao carregar um menino de dois anos, e seu sorriso desdentado queria ser simpático para pedir ajuda a um e outro cliente do vagão restaurante. O chefe do trem surgiu intrépido e pediu que ela saísse. “Por favor, senhora! Por favor!” A pobre mulher, sorriso triste, retornou mansamente ao chiqueirinho da 3ª classe, enquanto o menininho suplicava por um pedaço de bolo, olhos estatelados de fome. Ninguém se compadeceu do garotinho.

Aquela cena me impressionou bastante, levando-me de volta ao vagão leito, onde minha mãe guardara biscoitos, pão com salame e outras coisas. Um vacilo dela, ida ao banheiro, e surrupiei os alimentos, levando-os ao vagão nordestino. Não foi difícil encontrar a mulher grávida e seu menino esfomeado, às voltas com um pão seco. Mal acreditaram quando doei a improvisada cesta básica. Creio ter visto lágrimas de gratidão nos olhos amarelados daquela mulher negra…

No desembarque em Belo Horizonte, ainda na plataforma subterrânea, senti uma mão pressionando levemente minha cabeça, suave afago de cabelos. Era a mulher grávida. Sorria de forma agradecida, olhos agora brilhando de esperançosa renovada. Ela se adiantou depois aos passos miúdos de minha mãe, sempre olhando para trás, mãos acenando uma despedida eterna. Jamais a veria novamente, soube na hora.

O menininho, aquietado em um dos seus braços, me olhou sem entender o porquê de tanto interesse da mãe por um desconhecido. Ambos desapareceram logo no corredor de acesso à plataforma superior da estação ferroviária, em meio a dezenas de outros perdidos do sertão nordestino…

Anos de estrada e coleta de importantes experiências humanas…

MINHA mãe nunca desconfiou que fui o autor desse justificado furto de alimentos. Atribuiu o sumiço dos quitutes a um descuido nosso. “Você devia ter cuidado do lanche, ao invés de ficar perambulando por aí. Alguém entrou aqui enquanto estávamos no vagão restaurante, tomando café!”

Assim, entre uma e outra viagem ferroviária, assimilei lições humanitárias preciosas. Passei a olhar os menos favorecidos com maior compreensão, entendimento sensível às suas limitações, destinos não complacentes. Não de modo crítico, como a maioria das pessoas costuma fazer. E hoje agradeço a Deus por tantos ensinamentos assimilados em fases distintas da minha marcha existencial…

 

 

 

 

 

 

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