Sob a inclemência de sol causticante numa esquina decrépita…

Por João Carlos de Queiroz – Cada cidade, lugar, tem uma Esquina dos Aflitos, local de reunião de pessoas descomprometidas com tudo, até mesmo consigo próprias. Cuiabá não é diferente: tem muitas esquinas similares, seja nos bairros ou área central. Algumas com características mais ou menos toleráveis, outras aberrantes pela sujeira excessivamente fétida, bebedeira, vozerio mal-educado, música brega, etc, etc…

O mais interessante é que os frequentadores de tais lugares parecem muito à vontade para estar ali, empreendendo colóquio ininterrupto ou entabulando discussões sobre motivos fúteis. Há sempre garrafas de bebida alcoólica em exibição triunfante. Por vezes, elas se tornam gatilho de confusão, desencadeando confrontos físicos. É quando o agito se transforma num corre-corre geral. Inclusive, de mulheres em avançado estado de gestação, adeptas do funk e outros ritmos rebolados.

Nas imediações do meu bairro, cataloguei duas esquinas especialmente chamativas por reunir os ingredientes acima. Seja segunda-feira, sexta-feira, Dia de Finados ou Sexta-Feira da Paixão, o movimento ali é sempre intempestivo, como se fosse reunião de rebeldia franqueada à situação social dos seus miseráveis atores.

Um dos pontos assinalados fica no Novo Terceiro, próximo à Avenida Miguel Sutil, e é ali que eles expandem alegrias falsas ou sentimentos reprimidos em sorrisos lacrimejantes. Nenhuma daquelas expressões traduz um sentimento humano real, apenas máscaras ocasionais; disfarces necessários para reprimir solidões ou retardar algo que talvez não vá fazê-los mais otimistas em viver.

Assim, quando os observo, também retribuo eventuais cumprimentos exageradamente felizes, motivados pela cachaça extra ou alucinantes de toda espécie. Mas, deduzi, a maior alucinação dessa gente é estar no palco de um teatro de grande público móvel cuja peça sintetiza o estrago da alma humana diante da decadência pela perda lamentável do amor à vida.

Para eles, qualquer coisa pode redundar em alento ou inconformismo geral. Sequer sabem direito quem está no páreo eleitoral, e pouco importa ao inquieto grupo de rua, a maioria sem teto, se o candidato a ou b tem vantagem sobre seus concorrentes. Mais interessante é partilhar o único corote disponível, e nisso sai até um empurra-empurra e outros chega-pra-lá. Há meses, presenciei um deles sair correndo com o corote transformado em troféu, enquanto uma legião sedenta de álcool vinha logo atrás…

Todas as besteiras dita acima é para ressaltar que, hoje, mais ou menos às 13 horas, passei ao lado dessa mencionada esquina e fiquei surpreso pela tranquilidade serena de dois componentes do grupo felicidade perdida ali presentes: tagarelavam qualquer coisa, gargalhando alternadamente, como se aquela fosse a melhor piada do mundo. Os chinelos surrados da dupla jaziam displicentes na calçada, enquanto inquietos pés imundos atritavam os paralelepípedos, ritmando com sons então inaudíveis.

Sabia que ainda faltava uma quantidade respeitável de horas para a chegada da noite, quando uma miscelânea musical agitaria tudo nas adjacências. Indiferentes a isso, ali estavam eles, rindo de algo que jamais saberei. A minha estranheza residia no clima de descontração absoluta, apesar do calor causticante da capital e sol abrasador.  Mesmo porque trovões já repicavam avisos de que São Pedro poderia liberar água farta sobre a capital mato-grossense em minutos, o que não aconteceu…

Enfim, retomei a marcha rumo ao aconchego do lar, não sem deixar de matutar sobre o que teria levado aqueles dois a montar plantão na Esquina dos Aflitos em hora tão imprópria. E à noite, pasmem!, ao transitar novamente pela área rumo ao centro de Cuiabá, diminuí a marcha para evitar atropelá-los: eles estavam bem no meio da rua, sambando em êxtase frenético. O dia de sol ficou para trás, e a noite sem lua, decididamente, tornou-se culto de mais uma etapa existencial vencida; destino de puro arrasto, sem o menor vislumbre de otimismo conscientemente real.

*Na foto que ilustra este texto, uma indigente toma banho em cima de tampa de esgoto. E ainda sorri feliz…

 

 

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