Sitiante Nem Pimenta, o cavaleiro que não fugia das almas…

João Carlos de Queiroz * – Meu primo Nem Pimenta, sitiante humilde do interior de Minas Gerais, ganhou fama de homem destemido por não temer enfrentar trilhas rurais em madrugadas frias e desérticas no retorno ao lar. Tampouco se importava se estivesse sob densa escuridão ou banhado por lua cheia, convite explícito para a ocorrência de muitos casos inexplicáveis do além. Tanto é verdade que o cavalo desse festeiro inveterado costumava relinchar nervoso nos sinuosos percursos empreendidos em horas mortas…

É um costume que o primo sequenciou desde a pré-adolescência, quando já saía sozinho nas noites de sexta-feira para tentar descobrir algum barulho animador nas redondezas do sítio familiar, apesar dos reclames dos pais Nina e Ambrósio. Por vezes, Nem andava quilômetros e mais quilômetros, acocorando-se espertamente numa rodada de música caipira. Na roça, qualquer visitante é sempre bem-vindo.

A verdade é que o homem farejava festa ao longe, e dali não arredava pé enquanto algum batuque animado cadenciasse o ambiente e alguma cachaça fosse servida.

Esses passeios madrugadores aconteciam, inclusive, durante o transcurso sacro da quaresma, época em que lobisomens e outras entidades estão oficialmente “liberadas” para aprontar poucas e boas no mundo normal. Pelo menos é o que diziam os moradores veteranos de Pires…

O próprio Nem se vangloriava de ter enfrentado muita coisa ruim durante seus passeios noturnos. “Nenhuma situação me arrepiou os cabelos. Já não posso falar o mesmo do cavalo, coitado: empacava com frequência em lugares apertados, a exemplo do capãozinho. Eu sabia que ele tinha visto algo diferente mais adiante ou até lá dentro do capão. Os animais têm esse dom…”

Foi justamente no capãozinho que Nem teve uma experiência pra lá de anormal, quando percebeu um peso súbito ser depositado nas ancas do cavalo. Olhou pra trás e viu uma espécie de vulto de caixão funerário atravessado ali, incrivelmente equilibrado. Parecia estar colado à pele do equino.

Nesse instante, o cavalo – que percebera ser depositário de carga fúnebre – empinou desesperado, negando-se a dar mais um passo e retorcendo o quadril para se livrar daquele ataúde fantasma. Atitude típica de animais de rodeio…

Nem não se importou muito com a esquisitice que ambos enfrentavam, preocupando-se mais em não ser catapultado da sela do animal. Ele ainda viu uma vaca preta com estrela cadente brilhante a poucos metros de si. “Ela ficou me observando o tempo todo, e depois correu direto rumo à entrada do capãozinho. Sumiu antes de sairmos de lá…”

Transcorrido o que sempre considerou apenas um incômodo noturno, Nem apeou ágil e retomou a marcha pra casa, puxando o animal docilmente pela rédea. “Ele estava visivelmente transtornado. Se forçasse montá-lo, poderia me derrubar”.

As aventuras tétricas dessa noite não terminaram no capão, recorda. Próximo ao sítio, ao ir abrir a única cancela que separa as propriedades na área, Nem avistou um vulto inexpressivo de chapéu sentado na extremidade da passagem.

“Para abrir, eu teria que quase tocá-lo, mas pedi licença e ele ficou quieto, mudo, como se não tivesse me visto ou ouvido. Fui lá e soltei a tranca da cancela, escancarando a passagem. Passamos e fechei de novo. Quanto ao estranho, ele continuou impassível por lá, apesar do frio madrugador…”

A luz corre-casa…

Chegando em casa, o primo dependurou a sela na sala e marchou direto para a cozinha, disposto a fazer um “vira-torto”, derradeiro jantar improvisado de festeiro. Ajeitou a lenha e abanou fortemente as brasas. Foi aí que notou uma lamparina acesa na sala de estar do sítio. Ao checar se acordara os pais com o barulho das panelas,m e a luz trêmula da lamparina sobrevoou o vão entre as paredes e o telhado da casa. Por quantas vezes tentou alcançá-la, ela fugiu dele…

“Diacho de luz esperta. Parece que quer brincar de pega-pega!”, ruminou enquanto mastigava um pedaço de torresmo. Assim, Nem preferiu ignorar esse jogo de gato e rato e terminou seu jantar. “Fui dormir e fiquei observando essa luz andar por toda a casa. E ela parou várias vezes na porta do meu quarto. Não me incomodou nada…”

*O primo Nem continua morando no mesmo lugar que foi palco de suas peripécias da adolescência e juventude. Já é avô e um marido exemplar de Zezé, também minha prima por parte de mãe. A cada conversa com Nem recolho um arsenal de histórias para narrar em algum momento, como faço agora…

 

 

 

 

 

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