Sensações ciclísticas de um pré-adolescente…
Montes Claros-MG – É preciso retroceder nos anos para tentar entender parte das emoções relatadas adiante. Mas vamos tentar, enfim… Pois resgatar fatos da infância e adolescência exige imersão saudosa em tempos finalmente valorizados; conclui-se ter sido a melhor época de nossa vida.
Tudo começa com um garoto magrelo, ávido por conhecer o mundo a bordo de sua bicicleta, um modelo bem antigo, presente emotivo do pai:
– Cuide bem dela, João. Durante anos, foi meu transporte, e o de vocês, também. Nem devem se lembrar das viagens feitas na garupa até à creche… – recomendou.
Na realidade, eu cobiçava aquela bicicleta desde que ficou meio aposentada, quase assumindo papel de peça de decoração caseira. Isso foi logo após meu pai, gerente da Transportadora Expresso Mineiro, receber um Chevrolet a gasolina para entrega das mercadorias locais.
Dizem que “nunca devemos descartar um velho amor, por causa de novo amor”. Meu pai contrariou esse ditame popular…
O importante é que, agora, a bicicleta mudara de dono. Nem me importei com seu aspecto ultrapassado, sem marchas, pedais afixados por pinos. Vez ou outra, um deles afrouxava de surpresa, exigindo pronto rebate.
No início, senti certa dificuldade em pedalar, e até mesmo para montar, em decorrência de a bicicleta se contrapor ao meu físico franzino. Desafio do qual jamais me queixei, superando-o sorrindo.
Com relação aos pinos dos pés de vela, acondicionei martelinho no guarda-ferramentas de couro, afixado abaixo do banco. Se acaso um dos pinos saltasse fora, corria risco de bater os testículos diretamente no cano. Meu pai alertara sobre isso…
Os freios da idosa metálica de duas rodas também exigiam manutenção cuidadosa, sendo acionados ao reverter os pedais. Detalhe: o desgaste das engrenagens anulava a frenagem, interferindo na segurança das pedaladas. Igualava-se a um macaco hidráulico perdendo pressão subitamente.
Em algumas ocasiões, ao me posicionar (quase em pé) para forçar um dos pedais, ele “afundou” abruptamente. Colisão que causou dor intensa nas partes baixas…
Quem tem imaginação criativa, pode visualizar uma criança inicialmente em requebros cômicos, esforço vital para conseguir pedalar uma bicicleta rústica e alta, de dimensões impróprias às suas perninhas.
Depois, ainda imaginando a cena, essa mesma criança grita de forma desesperada, quando suas partes sensíveis colidem brutalmente com o cano central da bicicleta, feito um elevador que despenca do último andar pelo poço, sem freios…
Tais queixumes doídos não chegaram a me desestimular, e continuei pedalando e cuidando da minha velha amiga, companheira de locomoção. Aos poucos fui crescendo, e o tomba pra lá e pra cá, que adotara para pedalar, foi descartado de vez. Passei a pedalá-la confortavelmente sentado, só levantando do selim nas subidas…
Os mimos com essa bicicleta se associaram aos passeios, e eu a lavava todos os dias. Tinha o cuidado de polir aros e raios, apenas para ver seus reflexos cintilantes recrudescer nos rotineiros passeios pela Vila Ipê, geralmente ao cair da tarde. Ao voltar, a poeira alojada nas rodas exigia novo banho…
Foi a bordo dela que fui a Bocaiúva várias vezes visitar meus parentes paternos. Tia Amanda, irmã de meu pai, nessa ocasião uma mocinha, ficava encantada ao me ver chegar lá.
– Menino, de Deus! Você veio de Montes Claros novamente pedalando?! – dizia. Trata-se de um percurso de quase 60 quilômetros, que vencia prazerosamente. Uma delícia tomar café na Lagoinha e descer a serra de Bocaiúva ansioso para abraçar os primos e tios.
Numa dessas viagens, ao testar os freios da bicicleta, a corrente quebrou quando atendi à instrução da placa de aviso no início da serra: “Teste os freios”. O pior é que a bicicleta já estava embalada, e nem pude resgatar a corrente, preocupando-me mais em não cair na ribanceira lateral, ou colidir com os paredões rochosos.
A opção forçosa, no caso, foi manter a bicicleta no centro da pista cascalhada. À medida que descíamos, a velocidade aumentava e aumentava, e assim se manteve até a reta final de fim da serra. Ainda bem que nenhum carro subia aquela rampa quilométrica, no momento em que desci: teria colidido de frente comigo.
Por João Carlos de Queiroz, jornalista
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