Quase voos suicidas pelo quintal do engenheiro Arthur Jardim…

As crianças de hoje não têm as mesmas opções de entretenimento saudável das de antigamente, quando o mundo engatinhava tecnologia e sede de saber geral.
Naquela época, à falta de internet, e, principalmente, de $$$, pois mesada era palavra desconhecida, improvisávamos tudo, construindo nossos próprios brinquedos.
Dia a dia, a intensa criatividade inocente substituía carências do tipo, escancarando sorrisos contentes.
Que delícia brincar com aqueles rústicos carrinhos de madeira, cuja cabine não passava de lata de óleo de cozinha. A fértil imaginação infantil deduzia haver ali motorista e passageiros…
Carrinhos e patinetes de rolimã também extenuaram a paciência dos adultos. Muita gritaria alegre das crianças ao pilotar essas artesanais maquininhas de mentira…
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Montes Claros-MG…
No final dos anos 60, e a partir daí, nosso grupinho traquina primou por manter leal amizade na região da Vila Brasília e Edgar Pereira; comunidades desafiadoras aos olhos adolescentes. Aquela região, como um todo, simbolizava reduto de oásis aventureiro, precisando ser “desbravada”.
Originalmente, formávamos trio inseparável: eu, Afonso Celso e seu mano birrento, Floriano Magalhães. Difícil não encontrar os três reunidos…
Outros integrantes se aliavam aleatoriamente a esse trio: Altino Jardim, filho do célebre engenheiro Arthur Jardim de Castro Gomes, Eduardo Pedro da Silva, Humberto “Porquinho” [inimigo declarado de banho], o seríssimo Hélcio e o irônico Jânio.
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Quando unidos, e sem a cômoda internet atual, sequer televisão a cores, aprontávamos poucas e boas. Pilotar “carrinhos de rolimã”, suspensos sobre tábuas dispostas em tambores vazios, constituiu-se, por exemplo, em folguedo persistente, durante meses.
A pista suicida foi armada no quintal do engenheiro Arthur Jardim, encampando mais ou menos uns 60 metros de extensão. Aproveitávamos a gravidade da ala superior para despencar velozmente aos fundos do quintal. Isso, se não caíssemos antes…
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Arthur Jardim residia num casarão inconcluso, no bairro Edgar Pereira. Sempre pensávamos que planejasse erguer mais cômodos espaçosos; talvez até mais andares. Havia muitas salas inacabadas, espaços fartamente amplos e pedintes de tinta e acabamento geral.
De poucas palavras, o nobre engenheiro Arthur mal nos cumprimentava no ato da invasão do seu lar, olhando-nos de forma sisuda. Mas intuíamos existir nele um homem bom, bacana, só reservado.
Em síntese, o nobre engenheiro ‘falava’ muito pelo olhar. Olhar que o filho Altino obedecia piamente, escancarando desculpas esfarrapadas para debandar com os amigos arruaceiros…
Por vezes, Altino aparecia munido de potente telescópio do pai, e então subíamos à laje da casa, a fim de apreciar crateras lunares. Emocionante poder ver a lua bem de pertinho!
Preocupado em ser descoberto por ter surrupiado o caríssimo equipamento, Altino instruía para ficarmos em silêncio, pois o pai poderia desconfiar que seu telescópio estava em mãos irresponsáveis…
Transcorridos tantos anos, só tenho a agradecer ao engenheiro Arthur Jardim pela acolhida diplomaticamente fria na sua residência. Porque, apesar dos olhares aparentemente recriminadores, ele jamais nos repreendeu, deixando o bota-fora da molecada a cargo do filho Altino.
Devo ainda ressaltar que tinha profunda admiração pelo engenheiro, homem dotado de inteligência excepcional, segundo diziam meus pais. “Ele é homem além do seu tempo”, palavras da professora Maria Eny.
Arthur Jardim dominava a matemática com excelência, sendo reconhecido tecnicamente por vários estudos feitos em áreas distintas. A arqueologia se enquadrava aí.
Não foi mera coincidência presidir o Instituto Geográfico local, cargo ocupado por outras sumidades dessa boa terra mineira…
Quanto aos carrinhos de rolimã…
Pois bem: ao descobrirmos a profusão de tábuas e tambores no quintal do engenheiro Arthur Jardim, decidimos construir uma pista não vertical {a curva de finalização do trecho ficava na baixada do terreno}.
Dias após a conclusão da pista, com os tambores estacados pra não tombar no ato da passagem dos carrinhos, as “competições” tiveram início. Perdia quem não conseguisse controlar a direção dos veículos sobre as tábuas, despencando feio na grama rala ao lado; nada sério…
Não sei exatamente como essa pista foi demolida e a perigosa brincadeira acabou. Lastimável ter que procurar algum outro entretenimento, à altura de nossa sede aventureira…
Foi assim que passamos a efetuar incursões seguidas nos paredões do Rio Vieira, manancial de esgoto que cortava os bairros próximos. Lugar que muitos evitavam pela podridão de dejetos jogados no seu leito e a consequente fedentina geral.
As águas do “Rio de Bosta”, conforme foi apelidado, também fervilhavam em certos horários, em função dos produtos químicos procedentes da fábrica de óleo de mamona dos Irmãos Pereira; assumiam então sombria tonalidade de chocolate…
Isso causou incêndio colossal, certa ocasião, mobilizando bombeiros e voluntários. As chamas atingiram altura fantástica, alimentadas pelo esgoto químico.
As margens do Rio Vieira encampam muitas historinhas interessantes, depois conto…
Por João Carlos de Queiroz, jornalista
Fotos: Instituto Geográfico. Divulgação Google

 

 

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