Quando passei Réveillon no terreiro do lendário médium “Chico Preto”

O pai de santo se tornou grande amigo meu. Pessoa de prosa fácil, inteligente, e muito observador. Coletei com "Chico Preto" grandes conselhos de vida...

Por João Carlos de Queiroz , jornalista – Aconteceu há tantos anos que, hoje, quase não consigo reagrupar as imagens armazenadas na memória. Foi em Montes Claros, idos de 1979, recôndito de seca brava da região norte-mineira. Mais precisamente no Terreiro de Chico Preto, conhecido e respeitado Pai de Santo no Estado, adepto de umbanda e candomblé. Convidaram-me para participar de uma sessão no local, justamente na noite do dia 31.12. A sessão se estenderia mais além, entrando pela madrugada do dia primeiro.

No início, relutei apreensivo, pois não sabia simplesmente o que poderia acontecer naquelas quatro paredes. Ou melhor: numa sala imensa e redonda, sem paredes, somente ladeda por muro baixo. Meu ex-sogro, fervoroso umbandista, também foi convidado, e assim não tive outra alternativa senão aceitar; porém, com um pé meio atrás…

Chegamos ao terreiro ao anoitecer. O endereço não podia ser mais esquisito: ao lado do Cemitério do Bonfim, incrustado no meio de uma mata seca, poucas casas ao redor. O aspecto exterior do imóvel sinalizava evidente intenção de isolamento do restante da comunidade. Nem era preciso tal precaução: a vizinhança católica fugia a léguas dali, e os que passavam ao largo faziam o sinal da cruz…

Argumentei que poderíamos chegar mais tarde, já perto da meia-noite, quando a sessão estivesse em andamento. Mas meu saudoso sogro (já faleceu) foi enfático ao explicar que isto não seria conveniente às normas da casa. Mesmo porque, dias antes, citou, o próprio Chico lhe adiantara, em conversa informal, que ninguém poderia adentrar no salão após o início dos trabalhos, quando a batucada insurgisse forte sobre o foguetório comemorativo da Virada do Ano.

Assim, cumprindo as regras do terreiro, chegamos cedo. Chico Preto nos recepcionou sorridente, grandalhão que era, cabelos fartos e desgrenhados. Andava meio curvado, cansado, e confidenciou que aquilo vinha da carga de retorno dos feitiços feitos contra alguém. “É meio a meio: ele (vítima) e você recebem idêntica dose do mal. O médium aguenta mais por ter forças no mundo do além. Com o tempo, após tantos feitiços, fica prostrado, consequentemente sentindo reflexos doloridos e limitações no corpo. E chega uma hora em que não aguenta mais…”

Lacônico, o Pai de Santo disse que seu tempo na terra, “de aparelho”, estava mesmo prestes a findar. Enquanto falava, passou bem do nosso lado um imenso bode preto barbudo, e Chico explicou que aquele animal (outro “aparelho”) também já tinha seus dias contados. “O “dono” vem buscá-lo em breve”, exprimiu sem sentimento de piedade ou perda. Não entendi nada… O sogro me cutucou disfarçadamente, pedindo pra não insistir com perguntas.

Somente quando deixamos o lugar (após a meia-noite) é que soube do infeliz destino do bode: seria imolado cruelmente num ritual de candomblé. Nunca gostei disso: ofertam sangue inocente para obter benefícios. O sogro comentou que alguns centros de macumba do país (vamos usar esse termo) já foram acusados de utilizar crianças, ao invés de animais. Não era o caso do terreiro de Chico Preto…

Naquele dia, pela movimentação de pessoas entrando e saindo, acendendo velas e preparando comidas, o terreiro se preparava de forma especial para receber o ano vindouro. Um Réveillon diferente. Os pedidos seriam direcionados às entidades de luz e das trevas, segundo o médium Chico Preto. “Trabalho com os dois lados. Ambos são importantes, sempre ajudam”.

Faltava mais ou menos uma hora para a meia-noite quando fomos convidados a adentrar no salão redondo, situado no andar superior do centro. Pediram-nos para retirar os sapatos ao pé da rampa, não escada, e subimos silenciosamente (em fila) pela estreita passagem de acesso ao piso superior. Meu coração disparara: temia encontrar algo ali aterrorizante. Lembrei-me do simpático bode, igualmente temendo que resolvessem oferecê-lo como oferenda principal do ritual de Ano Novo…

Chico Preto entrou todo de branco, bem alinhado, e após pronunciar palavras em língua estranha, autorizou o início da batucada, a princípio bem cadenciada, lenta. Chico voltou a falar dizeres incompreensíveis ao idioma português. Deduzi que seriam códigos do candomblé para chamar as entidades a participarem da festa. A sessão tinha esta conotação: festa.

Nesse meio-tempo, formou-se uma fila redonda. E todos começaram a circular sem parar pelo salão, comandados pela voz imperiosa de Chico Preto, gradativamente alta. Os tambores, por sua vez, aceleraram os batuques, seguindo-se cantorias que nunca imaginei ouvir em nenhum lugar do mundo. Vozes sincronizadas em semblantes inexpressivos, compenetrados, apenas…

Foi aí que percebi que alguma coisa rolava de mão em mão pela fila circular de dançarinos, pois alguns já gingavam afoitamente. Era uma garrafa de cachaça, e cada pessoa que a recebia tomava um gole, ou dois. Não recusei a oferta, e beberiquei o álcool com a esperança de descontrair meus receios de estar numa sessão de candomblé. Senti que minha vista ficou parcialmente turva nos goles seguintes. Não estava acostumado a bebidas etílicas…

De repente, escutei gritos raivosos, emitidos por Chico Preto, agora em francas contorções na roda formada no salão. Impressionante como seu corpanzil conseguia girar tão rápido, além de empreender saltos altíssimos. A batucada ganhou um ritmo ainda mais frenético à exposição contorcionista do pretenso convidado especial, pelo visto incorporado no Pai de Santo…

Bebi mais doses de uma outra garrafa que chegou providencialmente às minhas mãos. A primeira, vi bem, estava de posse perpétua do médium Chico Preto, que gargalhava sem parar, feliz. E num espasmo digno de ser aplaudido por atletas de trapézio, ele se lançou metros à frente, para depois efetuar saltos mortais seguidos. O baque de suas costas no cimento foi ouvido por todos, apesar dos batuques ininterruptos. “Essa doeu!”, imaginei. Que nada! Chico já se levantara para, sem pestanejar, empreender mais saltos mortais e eclodir novamente as costas no cimento. E sem parar de gargalhar e beber…

Os últimos movimentos de incorporação de Chico foram prudentemente controlados por outros médiuns presentes; perceberam que ele poderia se cortar nos cacos de vidro da garrafa, raivosamente lançada contra o muro. A dança e batucadas cessaram quase que simultaneamente a partir do seu retorno de lucidez. Fim da sessão. Quase uma hora…

Descemos no mesmo silêncio assumido antes, ao acessar o salão. Chico bebia água lá fora, e nem parecia bêbado, sequer cheirava a álcool. Também não parecia sentir dores nas costas, impressionante! “O bom dessa sessão foi que não mataram nenhum animal”, cochichei com o sogro. “Foi de umbanda, não candomblé”, rebateu. Insisti para saber qual era a diferença. Ele apenas me olhou impaciente…

O ex-sogro passou então a conversar com Chico Preto a um canto da sala de estar, em voz baixa. Confidências, no mínimo. O bode condenado ainda andava tranquilo pelo terreiro, alheio ao seu destino de morte. Uma médium comentou que já escutara ele falar numa das sessões. “Animal não fala; o aparelho, sim”.

A exemplo da recepção de chegada, Chico nos acompanhou até o portão. Vi um velho Monza branco ao lado da entrada principal. “Meu carro. É o único que tenho. Mas me serve muito!” – palavras sinceras do médium. E saímos dali sob acenos comedidos de seus braços largos e gordos. Imaginei que aquilo talvez não fosse simples despedida, mas uma espécie de bênção ao Ano Novo…

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