Nostálgico sacolejo ‘mastigatório’ do Trem Azul…
Sempre achei interessante o intrínseco emaranhado de linhas ferroviárias, e também a forma como o trem passa por todas elas seguro de si, determinado a seguir seu destino. Momento em que é possível captar nitidamente o impaciente mastigar das rodas de aço na via férrea. Mas logo tudo fica pra trás, pode-se observar na janelinha do último vagão…
Geralmente, tais cruzamentos são montados nas estações de maior porte, ponto de encontro dos que viajam em sentidos contrários; lugar em que as composições sempre aguardam a chegada dos colegas metálicos, para então partir. Difícil precisar qual daquelas linhas está liberada…
Na saída de Belo Horizonte-MG, por exemplo, essa era uma das minhas observações prediletas: mal o trem deixava o cinzento terminal ferroviário, começava o matraquear de troca-linhas na área urbana, enquanto os prédios da capital desfilavam solenes à passagem da série de vagões azuis.
Impressionante saber que centenas de rodas de aço nos conduziam sensatamente rumo ao Norte de Minas Gerais, apesar de tantas linhas dispostas aqui e ali. Lembrava até fiação elétrica clandestina, com braços metálicos dispersos de toda forma, sem nenhum traçado perceptível.
Indiferente à curiosidade dos passageiros, o Trem Azul prosseguia sua missão. O mais interessante é que, muitos minutos depois, esse sôfrego mastigar deslizante desaparecia de vez, substituído por maior firmeza de marcha estradeira.
Cumprindo seu papel de condutora de destinos, a locomotiva vermelha e amarela berrava franca disposição para cumprir centenas de quilômetros…
Pelo horário da partida de BH, final de tarde, urgia apreciar o restante da luz solar, pois não tardaria que a noite estendesse seu manto impenetrável aos olhares curiosos dos embarcados. Seria mais uma viagem rotineira…
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FOI assim que cruzei um sem número de vezes esse trecho ferroviário, entre Montes Claros e Belo Horizonte, e vice-versa. Por vezes, acordava quando o trem estava imobilizado em Corinto, à espera da chegada do cargueiro. Não havia como seguir viagem com outra composição vindo na mesma linha…
As últimas paradas, no regresso de Belo Horizonte, eram bem mais especiais, significando proximidade do fim da viagem: Bocaiúva e Pires e Albuquerque
O Trem Azul detinha sua marcha em Bocaiúva lá pelas 4h, ainda envolto em denso negrume noturno. Parada rápida, apenas para desembarque e embarque de passageiros e carga. O mesmo acontecia mais adiante, quando a composição aportava em Pires e Albuquerque.
Sonolento, eu colava o rosto à janela do vagão poltrona-leito, fortemente embaçada de orvalho madrugador. Se fosse em junho ou julho, seria preciso passar algum pano para poder assuntar o lado externo.
Mesmo no acordar do dia, havia muitas pessoas em vai e vem constante pela pequena plataforma da estação, vendendo biscoitos, frutas, hortaliças, etc. No geral, todos com cara de sono.
Novo apito melancólico e a locomotiva reiniciava então a longa marcha, enumerando trancos sucessivos na arrancada. Dali em diante, sabia, ninguém mais queria dormir, e um blá-blá-blá desenfreado tomava conta do trem. Irresistível o cheiro de café procedente do vagão-restaurante…
Melhor apreciar tudo que pudesse agora, incluindo o despertar do campo, onde inocentes bovinos experimentavam a liberdade das matas, totalmente desinformados do seu triste destino próximo nos frigoríficos.
Não tardaria e a Igrejinha de São Judas Tadeu, posicionada nos arredores de Montes Claros, nos saudaria com brilhante Sol matutino envolvendo sua estrutura branca…
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Em todas as viagens que fiz, nossa chegada a Montes Claros sempre mereceu cumprimentos de pessoas posicionadas ao longo da linha férrea. Talvez madrugassem todos os dias, dispostas a saudar viajantes igualmente estranhos para elas, cujos feições jamais seriam captadas por nenhuma retina distante – dentro e fora do trem.
O certo é que esse terno afago de cumprimentos chegou aos nossos corações. Emocionei-me muito ao ver uma mulher balançando um lençol branco à nossa passagem, enquanto um dos braços mantinha criança presa à sua cintura. Parecia dizer: “Bem-Vindos!”
Por João Carlos de Queiroz, jornalista
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