Ao aterrissar no Parque do Xingu (MT), piloto mineiro quase vira banquete em ritual indígena

Caso sucedeu há décadas, mas ainda hoje é comentado por aeronautas de todo o país. O piloto mineiro Leonardo José Vieira disse que esse episódio mereceria um livro. "Estive perto do inferno e Deus me resgatou..."

Tem histórias que muitos duvidam, catalogando-as de fantasiosas. Isso porque algumas narrativas extrapolam padrões convencionais da realidade mundana.

Foi mais ou menos isso que aconteceu com o experiente comandante Leonardo José Vieira, mineiro de Bocaiúva, feito prisioneiro numa aldeia do Alto Xingu (MT) ao aterrissar emergencialmente, por causa de mau tempo.

Na época, Leonardo ainda estava iniciante na carreira aviatória, realizando voos free-lancer e instrução primária nos aeroclubes de BH e cercanias .

Assim embarcou dia 2 de julho/1983 no Cessna Skylane 182, prefixo PP-SJK, propriedade do empresário goiano Roberto Correia Leal. O destino: garimpo de Peixoto de Azevedo-MT. Seria mais um voo normal, pensava. Estava enganado…

Como imaginar que se tornaria prisioneiro de índios, destinado a virar ‘mistura’ de banquete?

Então revoltados contra algumas medidas impostas pela Funai, os caiabis planejavam cozinhar a cabeça do aviador num tradicional ritual.

A Festa da Cabeça dos guerreiros (da tribo dos caiabis) não era realizada desde 1973. No caso, o crânio do piloto passou a ser o ingrediente principal, por representar a odiada raça branca do conflito politico x Funai.

Esse fato chamou a atenção do país inteiro, sendo alardeado maciçamente ´pela imprensa, merecendo cobertura especial do Correio Brasiliense/Jornal do Brasil.

Não fosse a pronta ação dos coronéis Ivan Zanini e Roberto Guaranis, além do sertanista Cláudio Villas- Boas, Leonardo seria hoje lembrança saudosa de amigos e familiares…

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Segundo noticiou o Correio Brasiliense, o resgate do piloto na aldeia dos caiabis foi mesmo cinematográfico. História confirmada por Roberto Leal, dono do Cessna 182, retido na aldeia, e pelo caiabi Paié e cacique caiapó Raini Mekranoti, do Xingu.

“[…] No decorrer da Festa da Cabeça (Iauaci), os guerreiros cantam e dançam pintados de vermelho, e passam de mão em mão uma cabeça descarnada de branco, regada a aguardente de mandioca, até que ela fique seca” – diz trecho da reportagem do CB.

Leonardo narrou cada detalhe dessa aventura expressando visível amargura. A ferida emocional ainda não cicatrizara…

Ao entremear as frases, ressaltou ter agradecimento impagável por todos que participaram do seu resgate.

– Decolei cedinho, mas uma chuva torrencial me pegou horas após, quando já sobrevoava o Parque do Xingu, em MT. O tempo fechou 100%, num raio de dezenas de quilômetros. Chequei o mapa aéreo e descobri uma alternativa perfeita: pista homologada numa aldeia próxima. Desviei o curso do Cessna e aproei nessa direção…

Antes de tocar o solo, Leonardo fez sobrevoo baixo de averiguação, aparentemente constatando a normalidade do local (pista em bom estado). Ademais, explicou, não havia nenhuma restrição na Carta Aérea.

Mal o monomotor aterrissou, levantando tufos d’água, Leonardo percebeu vultos se movimentando rápidos nas laterais da pista cascalhada.

Nem passou pela sua cabeça que fossem índios em estado de rebelião; sabia que os silvícolas são curiosos…

No ato do desligamento do motor, foi cercado por um bando ruidoso de guerreiros.

As expressões dos indígenas nada tinham de amigável, percebeu. Pior: brandiam as machadinhas sem parar. Outros portavam porretes, arcos e flechas…

– Fui arrancado brutalmente do avião. Jogaram-me feito traste no chão. Um deles colocou o pé diretamente no meu pescoço, pressionando-me na lama.

Eufóricos pelo que consideravam vitória contra a Funai, os índios gritavam sem parar. Sobrou até para o avião, que passou a ser sacudido e abalroado por machadadas.

Rosto na lama, sentindo dificuldades até para respirar, o piloto viu de relance seus pertences sendo surrupiados pelos índios.

– Abriram minha mochila e as roupas foram distribuídas ali, juntamente com meus documentos. Depois, retomaram a pancadaria contra o Cessna. Óbvio que queriam destruí-lo…

De repente, um dos índios disse algo ao empunhar a machadinha. Leonardo percebeu que falavam dele, talvez do seu destino. Iriam matá-lo, teve certeza.

Divulgação: Youtube

– Aí, a pressão [do pé] sobre meu pescoço afrouxou repentinamente. Suspeitei que se preparavam para me degolar naquele instante.

Em segundos, passou um filme desesperador pela sua cabeça…

– Comecei a chorar copiosamente. Afinal, morreria de maneira estúpida, feito um.animal. Fechei os olhos, à espera da machadada fatal…

Sem mais nem menos, o índio ameaçador mudou de opinião, levantando-o aos trancos. E, sob cutucões de lanças, Leonardo foi empurrado rumo à aldeia, seguido por legião de gritadores.

– Nem me importei mais ao sentir os cortes produzidos pelas lanças. Sangrava. Na aldeia, rasgaram minhas roupas, incluindo as cuecas. Deixaram-me completamente nu; fui amarrado num toco, fora da tenda.

Na primeira hora, relata, ele conseguiu – apesar de trêmulo – se manter em pé, observando os índios se movimentarem.

Os guerreiros pareciam não se importar com a chuva, cada vez mais forte e fria…

DESENHOS DE MARCELO LÉLIS

Transcorridas quase duas horas e meia, Leonardo sentiu dormência e forte dor nas pernas, e quis se acomodar na lama. Eis que surgiu um índio do nada, cutucando-o aos gritos para se levantar.

A alternativa [das horas seguintes] foi se recostar num dos pilares da tenda. E rezar…

Dali em diante, os índios ignoraram Leonardo e sua sofrível condição de prisioneiro. Estavam mais preocupados em preparar o ritual misterioso. Nem ele tinha ideia do tema da festa…

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Os indígenas se revezavam nas tarefas, descascando mandiocas, cortando legumes, lenha, ou ajeitando uma grande fogueira, armada no centro da aldeia, sob lona suspensa. Cozinhavam para muita gente, sem dúvida.

Leonardo percebeu que aquele banquete estava estranhíssimo, pois não vira nenhum animal abatido…

– Meu corpo arrepiou ao desconfiar que queriam é me devorar. Já lera muita coisa sobre índios canibais no Parque do Xingu, e das atrocidades que cometem quando se rebelam contra os brancos. E lá estavam eles, em franca revoltosa, corpos pintados para a guerra…

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Como é praxe nesse ritual, os caiabis convidaram outros caciques da Nação Indígena do Xingu para participarem da macabra festa.

A decapitação do piloto Leonardo Vieira aconteceria nas primeiras horas da manhã, segundo o sertanista Cláudio Villas-Boas.

Por sorte, um dos convites deles caiu nas mãos do cacique caiapó Raoni Mekranoti, que informou à Funai que um piloto branco tinha sido feito prisioneiro.

– Se não agirem rápido, os caiabis vão cozinhá-lo amanhã cedo, no início da Festa da Cabeça – alertou.

Na verdade, os índios queriam também as cabeças dos coronéis Ivan Zanoni, Roberto Guaranys, e do coronel Anael Lemos Gonçalves, da Funai.

Os silvícolas estavam revoltados com a política do órgão, externando desejo de que esses assessores do presidente do órgão, coronel Paulo Moreira Leal, fossem demitidos.

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A Funai acionou a FAB, informando que o sertanista Cláudio Villas-Boas, juntamente com o diretor do Parque do Xingu, Cláudio Romero, e o cacique Raoni, sairiam de barco para tentar chegar à aldeia ao amanhecer.

Ficou combinado que um avião da FAB aterrissaria lá às 8h, a fim de promover o resgate de Leonardo Vieira. Pediram que o instruísse para ficar pronto e sair correndo, direto para o avião.

Sem saber dos preparativos para salvá-lo, Leonardo curtiu uma longa noite de martírio. Acredita que pode ter dormido alguns minutos em pé. Ao cambalear, sempre levava cutucadas de lança…

Correndo contra o tempo, o grupo salvador empreendeu marcha aquática ininterrupta pela floresta do Xingu, a bordo de voadeira (barco motorizado).

Viajaram a noite inteira e – confirmando previsão inicial – conseguiram chegar à aldeia caiabi de manhãzinha.

Cláudio Villas-Boas, o cacique e o diretor do Parque do Xingu foram recebidos educadamente, sentando-se com os índios no pátio da aldeia, debaixo de chuva. Assim conversaram por cerca de 30 minutos.

Leonardo disse que viu quando chegaram, mas não pôde se aproximar. Em sinais discretos, o grupo o instruiu para aguardar.

– Depois, o sertanista Cláudio Villas-Boas veio até mim, trazendo um mamão, e cochichou para ficar atento ao barulho de avião. Sutilmente, ele me desamarrou. Os índios viram, porém não interviram. Gostavam mesmo muito dele…

– Eles não vão amarrá-lo novamente, pois pensam que é obediente, e vai ficar quietinho. Escute bem: quando o avião pousar, saia correndo o máximo que puder.

O sertanista ainda frisou:

– Não importa que gritem, persigam e lancem flechas e arcos. Terá preciosos segundos de vantagem nesta fuga, pois vai surpreendê-los. O avião vai taxiar com a porta aberta; dois militares o auxiliarão no embarque.

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Na sequência, o sertanista voltou a se sentar na roda indígena, discutindo pontos que os índios queriam que fossem revistos pela Funai.

O ronronar do turboélice EMB Bandeirante ecoou forte no horário combinando, instigando vigilância amena dos índios. Passaram a olhar para os lados, tentando vê-lo entre as nuvens baixas.

O avião saiu subitamente da camada e aterrissou de surpresa. Alguns índios se levantaram com armas em punho, imaginando que seriam atacados.

Leonardo aproveitou esse deslize de atenção dos indígenas para disparar as pernas ao encontro da aeronave, que já tinha a porta traseira aberta e dois homens posicionados, lado a lado.

– Nunca corri tanto em minha vida, ouvindo aquela turba revoltosa atrás de mim. Ganhara boa dianteira, conforme previra o sertanista. Isso impossibilitou o alcance de lanças e flechas.

O EMB-Bandeirantes fez giro rápido no final da pista, momento em que Leonardo conseguiu chegar à pequena porta e ser içado rapidamente.

Porta fechada, o bimotor turboélice acelerou a pleno, antes mesmo de alinhar com a pista.

A corrida de decolagem teve breve acompanhamento de feroz cerco indígena, perseguição desfeita pela velocidade da máquina.

– Pela janelinha do EMB, vi o desespero dos índios tentando nos parar, jogando lanças, flechas. Felizmente, nenhuma acertou os pneus ou as hélices, apenas a fuselagem.

O Bandeirante decolou firme, deixando os caiabis a ver navios…

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Ao empreender curva alta, acima da aldeia, os militares comemoraram o êxito da operação.

– Rapaz: salvamos você de um caldeirão indígena! Nasceu de novo, sabia? – comentou um deles.

Emudecido pela emoção, Leonardo disse que voltou a chorar compulsivamente, desta vez de alegria.

– Dentro do avião estava frio, mas me deram um cobertor. Assim permaneci durante toda a viagem…

Preocupado, quis saber se os índios não fariam nada contra o trio que foi salvá-lo. Ficaram na aldeia…

Os militares informaram que os indígenas tinham dívidas de gratidão com Cláudio Villas-Boas, considerando-o amigo e protetor dos povos originais.

– Cláudio é habilidoso nesse aspecto: vai conseguir embromar os índios. Fique tranquilo…

Leonardo soube, dias após, que Villas-Boas induziu os índios a pensar que ele próprio foi enganado pela Funai ao negociar sua libertação.

O sertanista Cláudio Villas-Boas permaneceu alguns dias na aldeia, a fim de amenizar essa situação. Finalmente, conseguiu intermediar acordo entre os indígenas e a Funai.

– Ele foi muito corajoso, pois os índios poderiam se vingar nele e nos outros dois. Arriscaram suas vidas por mim. Sou muito grato!

Leonardo desembarcou na Base Aérea de Belém do Pará enrolado no cobertor, e recebeu roupas militares no alojamento do quartel.

– Tudo que tinha (documentos pessoais, relógio, dinheiro, óculos), etc., ficou pra trás, naquela aldeia maldita. É uma experiência que não desejo para meu pior inimigo!

AVIÃO RETIDO

Durante dias, a Funai tentou que os índios liberassem o avião, sem sucesso.

– É uma das versões comentadas na época. Porém, uma outra versão é de que os caiabis queriam o aparelho. Virou troféu. O proprietário da aeronave (Roberto Leal) também tentou reaver seu Cessna Skylane durante meses…

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Nas negociações firmadas entre caciques e Funai, os indígenas afirmaram não ter cometido nenhuma violência física contra o piloto. Isso foi desmentido por integrantes da própria aldeia, durante reunião em Brasília-DF.

– Sofri barbaridades nas mãos desses selvagens. Digo isso pela forma como tudo aconteceu. Enfim… estive lá e senti na pele cada pontada de lança nas carnes. E pensar que planejavam transformar minha cabeça em taça de bebida alcóolica, à base de mandioca…

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Por João Carlos de Queiroz, jornalista. Mtb 381.18. DIREITOS AUTORAIS RESERVADOS
Com informações do Correio Braziliense e Jornal do Brasil

Desenhos: Marcelo Lélis

SOBRE O PILOTO…

*O aviador mineiro Leonardo José Vieira (abaixo) é um apaixonado por tudo que voa. Mesmo na condição de piloto comercial, operando modelos monomotores, turboélices e jatos, foi instrutor nos aeroclubes de Belo Horizonte -MG, tornando-se checador credenciado do antigo DAC – Departamento de Aviação Civil (atual ANAC).

Leonardo confessa se sentir à vontade pilotando os lendários CAP-4 “Paulistinhas”. Sua habilidade com esse indócil monomotor impressiona os colegas.

As aulas com Cap-4 eram ministradas no ‘porta-aviões’ de MG, Aeroporto Carlos Prates (BH).

 

 

 

 

 

 

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