Paulo Roberto, o menino tocador de pandeiro

Por João Carlos de Queiroz – Paulo Roberto era um menino muito pobre e visivelmente doente, também morador do nosso antigo endereço em Montes Claros-MG, rua esburacada situada nas proximidades  da Avenida Geraldo Athayde, de acesso ao bairro Alto São João.

Não residia por ali nenhum outro garoto com suas características. Naquela época em que mantivemos certa amizade, pois ele era arredio, Paulo Roberto devia ter uns 14 anos, mas aparentava 11, no máximo; crescimento retardado em função da vida precária que levava com a avó benzedeira, uma velhinha de feição carrancuda.

Ambos sobreviviam praticamente da caridade alheia dos vizinhos e de outras pessoas anônimas. Da chaminé do carcomido fogão a lenha, instalado na divisa da cozinha com o quintal, dificilmente saía alguma fumaça. Paulo sempre ficava mastigando pão na soleira da porta, espécie de escada de chão batido.

O menino Paulo tinha explícito dom musical: adorava tamborilar um pandeiro que ele mesmo fabricara a partir de lata de marmelada e tampinhas de garrafa,primorosamente afixadas nas laterais. Seu precioso instrumento se constituía, talvez, no maior companheiro da solidão do retraído adolescente.

Não era raro escutarmos o pandeiro de Paulo Roberto entoando batucadas ritmadas no silêncio noturno de uma rua que dormitava ao cair da noite, em meio à agitação do centro da cidade. Os sons do rústico pandeiro se constituíam num matraquear sincronizado e de evolução dispersa. Isso levava horas e mais horas…

Por várias vezes, ouvi meus pais falarem sobre Paulo Roberto e de como sua vida era triste e sem perspectivas, questionando inclusive o paradeiro dos pais. Dizia-se inclusive na vizinhança que a avó o adotara desde criança, após ter sido abandonado.

Sobre o tal “pandeiro”, a insistência com que o menino doente tocava esse instrumento dia e noite, muitos moradores se indagavam se a idosa avó de Paulo não se sentia incomodada pelos acordes trepidantes que ecoavam rua afora. Para quem chegasse à porta do casebre para melhor assisti-lo, era impressionante a velocidade dos toques empreendidos pela sua mão direita na lata de marmelada, sincronia perfeita!

Paulo Roberto nutria ciúme doentio desse interessante pandeiro. Talvez nem o trocasse por um oficial, pois jamais quis vendê-lo aos que se compadeceram dos seus encantos pela música e, assim, quiseram ajudar o menino a obter um melhor instrumento.

Consequentemente, nunca ninguém teve o privilégio de segurar aquele pandeiro por meros segundos. Paulo olhava com desdém as pessoas que lhe pediam isso. O pandeiro era a preciosidade maior de sua vida simples. Podia-se qualificar o curso existencial do garoto como um indigente em formação.

A paupérrima casa de Paulo Roberto possuía aspecto frágil, e ficava a uns 150 metros da nossa. Foi construída à base de barro batido e tabocas. Ele se orgulhava muito do quintal tomado de lixo e mato, ‘muro’ de cipó trançado, julgando-se pela longa permanência nesse lugar. Já o telhado, era uma interessante mistura de telhas descartadas por alguém, reagrupando pedaços de amianto para impedir que a água da chuva transformasse o chão em poças de lama…

Todos tinha ideia nítida do sufoco que a avó e neto não passavam sob aquele teto em dias de fortes vendavais e durante o inverno. As frestas das paredes facultavam a qualquer curioso espiar as penumbras de um ambiente forçosamente chamado de ‘lar’. As sombras rastejantes ali dentro eram humanas…

No Natal e Ano Novo, observei, o casebre parecia se alienar totalmente da animação que cada residência da rua ostentava. Nem o típico matraquear do pandeiro era ouvido no decorrer da data festiva. A casa ficava o tempo todo às escuras, bem silenciosa. Nem parecia ser abrigo de dois moradores marginalizados pela sociedade. Nunca se soube que foram convidados para alguma ceia…

Sobre a avó benzedeira…

A avó do menino Paulo saía pouco à rua, assemelhando-se mais a uma bruxa da vida real. Uma vez, recordo, eu a procurei para me benzer. Dizia sofrer intensa de dor no braço e ela me olhou bem desconfiada, convidando-me a entrar com jeito não muito afável. Na realidade, eu não sentia nenhuma dor, e usei um arranhão vagabundo, quase imperceptível, como argumento para tentar desvendar algo sobre a idosa que criava um neto cascudo.

A benzedeira pegou sua tralha de reza e um ramo de não sei o quê. Veio em minha direção já dizendo umas frases esquisitas, enquanto fustigava o ramo no meu corpo inteiro. Sussurrava frases ininteligíveis ao entendimento de uma criança curiosa.

No meio da reza, Paulo apareceu na sala e observou aquela cena por uns segundos sem emitir o menor comentário. Fingiu não me reconhecer, apesar de termos nos encontrado em várias ocasiões.

Olhar aquele menino quase negro e com a pele coberta por uma espécie de escamas roxas dava pena em todos da nossa rua. Paulo Roberto nunca parava de se coçar, suplício externado em público. Seus olhos foscos se retorciam a cada exercício para minar a coceira brava que o atormentava dia e noite. Costumava fungar áspero nesses momentos. Cansei de ver denso catarro pendendo ameaçando sair de suas narinas para ganhar o chão…

Todas as crianças das redondezas recebiam alertas severos dos pais para não tocar em Paulo Roberto. O argumento era de que eles ‘poderiam se contaminar’. De quê? – cabia aí uma indagação. Talvez a aparência de peixe cascudo e a coceira fossem por causa da sua inimizade declarada de Paulo Roberto com a água, o que gerava suor fétido e perceptível a metros de distância.

Também notei que ele tinha consciência de sua própria sujeira e fedentina, pois não insistia em manter proximidade com ninguém. Conversava sempre de longe e nunca fazia menção de nos cumprimentar com apertos de mãos ou abraços. Entendia que a sociedade o excluíra sem chances de se redimir. Redimir de quê?

Apesar dos meus anos tenros, eu sentia pena de vê-lo assim tão humilhado por apresentar um corpo repleto de anomalias. Os pés do menino tocador de pandeiro se constituíam num amontoado de dedos de unhas toscas e quebradas. Sua cabeça, outra aberração, agrupava um ninho de caspas gigantescas, legítima touca de escamas esvoaçantes a cada vez que coçava os cabelos crespos.

Só me admirava ao ver que possuía dentes intactos, apesar de amarelos pela falta de escovação. Observar Paulo implicava em muitas interpretações: as expressões variavam entre triste e saudosa, meiga ou desconfiada. Tampouco se abria com as pessoas quando elas ofereciam presentes. Aquele menino tinha pavor do mundo que o escolheu como humano sofredor…

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Alguns anos transcorreram sem que aquela rotina da rua e da casa de Paulo Roberto fosse alterada. Mas, numa manhã chuvosa, acordei com uma agitação incomum na rua. Abri a janela e percebi que algo acontecera por lá. Muita gente na porta, ambulância, polícia…

Minha mãe já conversava na porta com uns vizinhos e não permitiu que eu saísse. “Não vá lá, fique aqui”, disse. Meu semblante criança pedia explicações e não era levado a sério. Aí, compadecendo-se desse meu olhar, a vizinha em frente à nossa casa explicou que Paulo Roberto havia morrido. “Não era pra falar”, recriminou minha mãe. Ela sabia que eu nutria certa afeição pelo menino pobre da rua.

A movimentação fúnebre continuou firme em frente ao casebre de Paulo por mais uma hora. Pensei na avó e na tristeza da benzedeira, agora sem seu neto por perto naquela casa úmida e escura, que, na medida do possível, era alegrada com seu pandeiro. Por quanto tempo mais ela sobreviveria à nova situação?

Ficamos observando cada desenrolar dos acontecimentos lá adiante.  Momentos depois, o corpo do menino Paulo saiu embalado numa maca de ambulância. Era tudo que restou dele: um pacote humano. Será que o pandeiro o acompanharia à última morada? Lágrimas rolaram na minha face corada e de pele ainda aveludada pela infância…

O carro branco {ambulância da prefeitura} desceu pela rua devagar, e muitos vizinhos acenaram lenços em sinal de despedida.  Pareciam adivinhar que o corpo do menino Paulo não retornaria à casa da avó para ser velado. Era o fim de uma trajetória existencial mal vivida…

Nunca soube exatamente que fim levou a avó de Paulo Roberto. A benzedeira sumiu de vez dias após a partida estranha do neto. A casa onde moravam praticamente ficou lacrada. Comentários davam conta de que ela se mudou para a casa de um parente em outra cidade. O certo é que os anos se encarregaram de deitar abaixo as paredes de barro batido e taboca, descortinando o quintal de lixo existente nos seus fundos.

Enquanto moramos ali – e foi por mais um bom punhado de anos – tive a impressão de ouvir, às vezes, os batuques cadenciados do pandeiro do menino Paulo Roberto e as risadas roucas que ele liberava. Isso certamente acontecia por conta de alguma coisa engraçada que só sua mente conseguia conceber nesses momentos de imersão musical…

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