O trenzinho que Papai Noel nunca trouxe…
Por João Carlos de Queiroz – Lá se foram os bons anos de infância inocente em Montes Claros, Minas, na velha casa próxima à Avenida Geraldo Athayde, situada na confluência de uma rua esburacada, sem nome. Do lado, vizinhança tranquila, morava a futura miss Virgínia Barbosa, e eu sempre gostava de perambular por lá. Geralmente, para ouvir canções antigas, que eclodiam em tom estridente da velha vitrola marrom, em rotação acelerada. Vez ou outra, eles me ofereciam doces caseiros…
A nossa casa, entelhada, tinha cômodos largos, e, criança curiosa que sempre fui, matutei um sem número de vezes como aquela estrutura conseguia se manter firme durante a época de chuvas, apesar de tremer bastante. À mais leve sacudidela, eu corria medroso rumo aos braços dos pais, e dali não arredava pé enquanto a tempestade não cessasse.
Por ser ainda criança imberbe, meus passeios não ultrapassavam cem metros. Mais adiante, numa quebrada de rua, de acesso ao “beco das mulheres velhas”, também me despertava a curiosidade o ar sinistro de uma quase choupana, à base de barro e taboca. “Casa de bruxa”, sem dúvida, pois a fama de “vó” Santa, a moradora, benzedeira centenária, de mãos trêmulas, já se espalhara. Mais interessante ainda era seu neto Pedro Paulo, tocador de pandeiro. Instrumento improvisado, devo salientar, que ele mesmo fabricou com lata de goiabada e tampinhas de garrafa.
Ao cair da noite silenciosa e escura, o batuque cadenciado do pandeiro simplório do cascudo garoto era ouvido nas vizinhanças, tornando-se fundo musical da tradicional “Voz do Brasil”, oriunda de roufenhos rádios elétricos. Meus pais alertavam pra jamais brincar com Pedro Paulo, pois poderia pegar coceira brava. De fato, o menino pobre tinha um coça-coça infernal, nunca cessava os esfregões de unha no próprio corpo, que às vezes sangrava, pude ver. Parecia cachorro sarnento…
Independente disso, eu gostava dele, e sentia o quanto a solidão o deixava triste. Pedro Paulo, cuja história contarei num outro dia, enfrentava sua condição paupérrima e de doente com nobre dignidade. Talvez residisse aí, hoje analiso detidamente, os sons mais tristes do seus rústico pandeiro…
Meus pais também insistiam em prometer que, um dia, Papai Noel iria me presentear com um belo trenzinho. Então, esperançoso, fui aguardando, e os anos e várias épocas natalinas passaram em branco, sem que o tal brinquedo chegasse…
Não sei quantas ocasiões eu pedi a ele, Papai Noel, para ‘deixar de graça’ e trazer logo meu trenzinho, alertando-o da proximidade do Natal. Na minha modesta análise criança, o Natal significava o segundo período de concessão de presentes, acima até do próprio aniversário. Porém, a cada manhã natalina, nada havia ao pé da nossa modestíssima árvore, de poucas bolas e nenhuma luz faiscante…
As decepções se acumularam e ganharam força gradualmente, ano após ano. Nem sonhava mais em percorrer as ruas próximas a bordo do trenzinho, viagem de longo percurso quilométrico, no meu imaginário criança. Aos poucos, comecei a me preparar ao saber que, no dia seguinte, véspera de Natal, não encontraria o sonhado trenzinho “ao pé” da árvore.
O ruim de tudo, em certo Natal, foi assistir a criançada vizinha brincar à vontade com seus presentes, já nas primeiras horas da manhã. Dois deles circulavam com velocípedes, felizes da vida. E eu lá, observando-os de forma invejosa, do alpendre {sem porta} da nossa velha casa alugada; e o pior: sem nada em mãos, a não ser a opção de ir pegar minha bola murcha de couro, presente do atencioso padrinho quando completei quatro anos.
Para despistar minha tristeza, nesse dia fui à casa de Pedro Paulo, supondo que ele também nada recebera no Natal, e assim poderíamos nos confortar, ou dar mais trela às fantasias. Estranhamente, não havia sons de pandeiro ali, e nem sinais da presença dos dois únicos moradores. Só se estivessem dormindo… Bati palmas, chamei e nada, apenas silêncio…
Aquela porta aberta, apesar de tentadora, sinalizava algo ruim no interior sombrio da tosca residência. Preferi não arriscar, e voltei a passos lentos pra casa, escapadela que mereceu um puxão de orelhas ameno do meu pai.”Já avisei pra não sair sem avisar, menino! Qualquer hora vai apanhar!” Nem precisava dizer nada; seu olhar expressava fúria contida…
Meus pais até que tentaram me animar na “ceia” antecipada de Natal: carne moída, arroz, feijão tutu e doce de abóbora com coco, sobremesa apetitosa. O sorriso amarelo de ambos, pela ausência de presentes, foi bálsamo imediato à frustração que sentia desde cedo, ao comprovar o inquietante vazio ao redor da árvore. Algumas crianças têm percepção para entender dilemas adultos…
Ao amanhecer, sentindo a umidade da noite que ainda espreguiçava, serenei meu espírito ao descer à cozinha e mordiscar um pão de sal seco e sem manteiga, umedecendo-o no café morno. Incrível como aquele velho bule verde conservava calor! Meu velho já saíra cedo, pra trabalhar. Não o veria sequer no almoço…
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Veio então outra noite, e, já esperava, não consegui conciliar imediatamente no sono ao refestelar meu rosto de lágrimas retesadas no travesseiro. Novamente, o silêncio noturno impôs indagações das quais não tinha a mínima ideia de serem passageiras ou persistentes, em natais seguintes. Do quarto, ouvi tosses secas do meu pai, sinais inequívocos de que ele precisava parar de fumar, seu único vício. Se parasse, poderia até comprar meu cobiçado trenzinho, juntar trocados e mais trocados até o Natal seguinte…
Aos poucos, disfarçadamente, fui decapitado da realidade consciente, e o “chefe do sono” me pegou de jeito. Nem pude perceber direito qual destino de luz meu corpo criança se lançou naquela imensidão de incógnitas, das quais talvez jamais descubra respostas plausíveis. Ainda pude ouvir, antes de perder de vez o sentido das coisas, a batucada longínqua e cadenciada do pandeiro de Paulo Roberto. O menino cascudo regressara misteriosamente no meio da noite, e era presumível que também lutasse contra encantamentos desfeitos…
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