O elevador de defuntos
O edifício Riachuelo (Rua Rio de Janeiro, 855 -Belo Horizonte-MG) operava com dois elevadores rústicos bem barulhentos (portas gradeadas): um social e de serviço. Esse último, maior, em formato retangular, era utilizado para transportar todo tipo de cargas. Inclusive defuntos
Durante décadas, incluindo as fases criança/adolescente, degustei estadia prazerosa de férias no antigo endereço da minha madrinha Neusa em Belo Horizonte-MG. O Edifício Riachuelo, composto por 12 andares, não tinha nada de diferente dos demais em toda a extensão da Rua Rio de Janeiro. O número do prédio branco ainda está gravado na minha memória: 855. Imóvel relativamente simples, acessado por um longo corredor. Ao final, havia um balcão de recepção, posto de sentinela do temível síndico Antônio.
Com óculos de grau avançado, Antônio sempre nos observava quando íamos embarcar nos elevadores. E grotescos pitos aconteciam se insistíssemos em apertar o botão de chamada mais de uma vez. “Aguardem, está vindo”, dizia ele, impaciente.
O Edifício Riachuelo possuía apenas dois elevadores, um social e de serviço, portas de madeira e grades. O último, de formato retangular, carregava de tudo: moradores, móveis, roupas e… defuntos! Abaixo, conto mais sobre meu susto…
Recordo ainda ter passado apuros distintos em ambos os elevadores, em virtude de panes frequentes no sistema de máquinas. Aí, ficávamos retidos entre um andar e outro, por bom tempo. A saída estratégica era apertar o alarme para pedir socorro e aguardar que o síndico salvador abrisse alguma porta. Por vezes, ao efetuar esse procedimento, o elevador subia ou descia feito um macaco de carro, com pequenos solavancos, para finalmente se alinhar à porta de evacuação emergencial. “Podem sair agora”, avisava o síndico.
Também aconteceu de o botão de alarme simplesmente não funcionar, mantendo-se mudo, e o jeito foi abrir berreiro de socorro no silêncio sepulcral do abismo negro cortado pelos elevadores…
Outros episódios arrepiaram os meus longos cabelos {naquela época}: uma ocasião, dirigindo-me ao último andar, apartamento da tia, o elevador destrambelhou os controles e passou direto rumo à casa de máquinas, metros acima. Houve um pequeno estouro elétrico, e uma profusão de faíscas irrompeu diante da porta gradeada. Em seguida, sem que eu pudesse evitar, o elevador afundou rápido para o térreo, ganhando velocidade incrível. Meu estômago embrulhou na hora, somando-se ao pânico da provável colisão, em segundos…
Foram segundos genuínos de puro terror. No que parecia ser um acidente inevitável, eis que um chiado estridente indicou o acionamento dos freios hidráulicos do sistema quando o aparelho já deslizava pelo paredão que antecede o térreo. Se passasse dali, bateríamos certamente na mola gigante abaixo, e com certeza sobraria pouca coisa…
O mais pavoroso foi ser obrigado a compartilhar o exíguo espaço retangular do elevador de serviço com um defunto. O “presunto” foi embarcado dois andares abaixo do apartamento da tia. Nem acreditei estar participando daquilo: mal a porta se abriu, a maca foi empurrada para o centro do elevador. Eu fiquei num dos cantos, espremido, olhando a boca aberta do idoso e suas narinas entupidas de algodão. O restante do corpo estava coberto. Por instantes, temi descer sozinho com aquele cadáver, mas um rapaz de branco conseguiu se espremer ali também. Seu colega informou estar descendo no próximo elevador (social).
Durante anos, evitei utilizar sozinho o elevador de serviço por causa disso. E mesmo acompanhado da tia ou outros parentes que a visitavam, sempre dava um jeito de não ficar no centro daquele espaço retangular, ainda recordando as feições estáticas da morte no senhor idoso. O síndico Antônio não entendia por qual motivo eu recusava embarcar nesse elevador quando o social estava em manutenção. “Prefere subir pelas escadas até o andar de sua tia?! É o último! Esquisito isso…”
Já quase adulto, aos 17 anos, quebrei o jejum de medo desse elevador ao transportar minha Yamaha de 50 cilindradas até o apartamento da madrinha. Havia levado a motocicleta a Belo Horizonte para retificar o motor, que eu mesmo desmontei e montei no quarto destinado a trabalhadoras domésticas. O problema foi o barulho do motor dois tempos pipocando força renovada e liberando uma fumaceira medonha. Acaso alguém assistisse à cena da rua, iria pensar que o Edifício Riachuelo estava em chamas..
Nem preciso dizer que, desta vez, quem levou pito sério foi o síndico Antônio. O pobre ouviu o desabafo da madrinha caladinho. Minha tia o recriminou por não tomar nenhuma providência, permitindo subir com motocicleta pelo elevador. Permissão resultante da simpatia de convívio de anos que com o velho síndico por meio de longas conversas no seu balcão de corredor, bem sabia…
João Carlos de Queiroz
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