O dia em que a morte me cumprimentou

Crianças e adolescentes descartam a sensação de medo para transformá-la em pura adrenalina em situações angustiantes aos adultos. Nem sempre percebem que tais experiências podem ser fatalmente irreversíveis...

Por João Carlos de Queiroz – Lá pelos meus saudosos 14 anos de idade, resolvi acompanhar o mano mais velho (José Antônio) e o primo Vinícius numa aventura pedalante entre Montes Claros-MG e o município bocaiuvense, terra natal dos entes paternos. Sempre uma visita pra lá de aconchegante, pois os tios e primos nos tratavam muito bem. O percurso comportava 54 quilômetros, sendo obrigatório transpor serras íngremes (ida e volta).  

As bicicletas eram daquelas comuns, freio a pedal (reversível). Pelo menos na minha cidade, nunca vi nenhuma com marchas. A que usava era presente do meu velho, de dois canos, pedais seguros por pinos que costumavam afrouxar após certo tempo, soltando-se. Assim, perdi a conta de quantas vezes colidi sofrivelmente meus delicados testículos contra o cano superior – dor medonha.

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Nossa intrépida viagem teve início às 4 da madrugada, tentativa abortada antes, por minha mãe. “Voltem todos pro quarto!”, intimou. O sono a venceu duas horas depois, e então aproveitamos para sair sorrateiramente, enfrentando a leve chuva madrugadora e um friozinho incômodo.

Recordo que, mesmo fustigado pela possibilidade de aventura, relutei um pouco em me integrar à turma nesse percurso longo, abandonando com pesar os quentes cobertores.

O amigo “Nivaldo Bundinha” também nos aguardava mais adiante, e o comboio das pedalantes marchou firme rumo à serra de saída da cidade, trecho ainda sem asfalto. Aliás, a estrada inteira estava em reparos para receber pavimentação, repleta de variantes enlameadas, escorregadias…

Nem tínhamos vencido ainda essa parte da viagem quando minha corrente quebrou, e por pouco não afundei novamente meus preciosos testículos no cano superior da bicicleta, conseguindo resvalar o corpo na hora “h”.

Sem “tração” (corrente) na bicicleta, a alternativa encontrada foi amarrar os cintos e transformá-los numa espécie de corda. Dessa forma inusitada, fui sendo rebocado até à Lagoinha, não sem antes pararmos para degustar uma espécie de café da manhã, constituído de farofa molhada, pois a chuva começava a dar sinais de força intempestiva, na alvorada. Impossível não bater o queixo, com os lábios certamente arroxeados…

Na lagoinha, encontramos um armazém que nos informou haver um sujeito entendido em bicicletas a poucos passos dali. Fomos até lá e o dito bicicleteiro oficial consertou a corrente, emenda que garantiu ser de excelente qualidade. Confiamos, claro, reiniciando a viagem…

Horas após, uma placa avisou que havia serra perigosa à frente, sendo prudente checar os freios. Meu mano e o primo, seguido pelo piadista “Nivaldo Bundinha”, tomaram a dianteira em estardalhaço, iniciando a descida com entusiasmo juvenil. Gritavam para ouvir a própria voz, via ecos. Eu não quis ficar atrás daquela bagunça, até mesmo por medo de me isolar da turma, e assim imprimi fortes pedaladas para acompanhá-los, o que levou minha bicicleta a ganhar  uma velocidade fantástica. 

Mais abaixo, outra placa voltou a avisar para testarmos os freios, e volteei o pedal com força, testando a frenagem. Qual não foi minha surpresa ao ouvir um preocupante estalo metálico e perder a corrente inteira, automaticamente ficando sem freios. E a bicicleta, indiferente ao meu desespero, ganhou ainda mais velocidade, a ponto de quase não conseguir controlá-la nas curvas mais fechadas da longa serra. 

Analisando hoje essa situação, concluo que tive foi muita sorte: se um carro estivesse subindo aquela serra, aí seria impossível evitar a colisão; impacto que, certamente, resultaria em óbito. Porque, pela velocidade alcançada, fui obrigado a permanecer bem no meio da pista, a fim de não resvalar serra abaixo (à esquerda) ou colidir com o barranco de pedras (à direita). 

Felizmente, nenhum carro apareceu à minha frente e consegui cumprir o percurso serra abaixo sem problemas, apesar de muitas derrapadas no cascalho solto, acumulado mais no centro da pista. 

O “fim” da serra culminou numa comemoração agradecida a Deus, e menos de um minuto depois pude avistar meus parentes posicionados ao lado da estrada a meio quilômetro, gesticulando para parar. Passei por eles velozmente, enquanto gritava: “Estou sem freiooooooo”.

Novamente, a “corda de cintos” voltou à ativa, e chegamos são e salvos a Bocaiúva, cidade localizada nas cercanias daquela serra respeitável. Lá encontramos uma bicicletaria decente, que consertou a pedalante e garantiu um retorno confiável.

O mais difícil foi enfrentar dona Eny, minha mãe, que já nos aguardava em Montes Claros com seus temíveis chinelos, berrando nervosa tão logo apontamos na soleira da porta nossas carinhas desconfiadas: “Seus desobedientes! Vão pagar caro, estou avisando!”

Nem é preciso dizer que foi um “pernas, pra que te quero?”

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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