O burrinho imolado era o próprio Deus…
Qualquer criatura viva é filha de Deus, parte d'Ele. Melhor que os torturadores de animais pensem nisso ao dar vazão a sanhas sanguinolentas contra esses inocentes seres indefesos...
UMA HISTÓRIA REAL. E SE REPETE MILHARES DE VEZES TODOS OS DIAS…
Havia uma legião de burros e jumentos que prestavam serviços a carroceiros de uma das regiões mais ressequidas do Nordeste. Um deles, aqui denominado de Valente, começou cedo seu trabalho escravo, após seu pai, já sem forças para puxar cargas pesadíssimas, virar mercadoria de consumo humano num matadouro da região. Ali, teve as patas decapitadas a machadadas, contorcendo-se de dor por horas a fio. Morreu sobre uma poça de sangue e suor…
Valente nem forças tinha ainda para sequenciar o suplício de trabalho escravo vivenciado por seu pai durante décadas, mas o carroceiro ignorou isso ao carregar a carroça pela primeira vez e, sem piedade, desferir violentas chibatadas incessantes no seu lombo magrelo. O pobre escravo se curvou de tanta dor, mas estava atrelado ao instrumento de tortura (carroça), e assim continuou a trabalhar por semanas seguidas. Alimentava-se do que encontrava pelo caminho, restos de capim seco e água empoçada.
Não tardou para que as costas do novo escravo quadrúpede nem pelos tivesse mais, expondo apenas um couro riscado pelo castigo. O monstro pretensiosamente humano, criminoso potencial, não se contentava apenas em sugar do animal tudo que ele podia oferecer em termos de força bruta: seu maior prazer era açoitá-lo diariamente. Castigo triplo quando estava contrariado com algo…
Valente apanhou bastante em silêncio dolorido e sem poder reagir, à mercê da bestialidade daquele ser infernal que o explorava 24 horas por dias. O burrinho nunca entendeu o porquê de muitos assistirem essas torturas de braços cruzados. Por várias vezes, alguém jogou balde d’água no seu corpo após as sessões de tortura, líquido que assumia cor vermelha pelo sangue gotejante das feridas causadas pelo chicote e pauladas. Instante em que lágrimas de agradecimento de Valente se misturavam às de alívio momentâneo pelo minimizar da ardência das chagas abertas no seu corpo trabalhador.
Um dia, Valente amanheceu sem nenhuma força nas pernas. Tentou se levantar a custo e não conseguiu, já prevendo que o torturador iria acorrentá-lo à carroça logo, logo. Conforme previra, lá veio o miserável assassino com o chicote em riste, forçando-o a ter as forças de que não mais dispunha. Valente o olhou fixamente para informar que não conseguia erguer o próprio corpo, momento em que sentiu a dor cortante de violenta chicotada na face. O sangue jorrou fácil, embebendo sua boca seca pela febre que o prostrou madrugada afora. Mais chicotadas aconteceram, seguindo-se pauladas, até que ele deitou de vez, pedindo a Deus que o levasse dali para um lugar onde não sofresse tanto.
Valente ainda resfolegava sem forças quando chegou um caminhão. Viu eles conversarem algo. Ato contínuo, o caminhão empreendeu marcha a ré e abriu a parte traseira da carroceria. Uma espécie de guincho ergueu Valente do chão, estatelando-o no centro. Valente não entendeu mais nada, tampouco o sorriso satisfeito do carroceiro contando dinheiro…
A viagem até o frigorífico demorou meia hora, aproximadamente. Deixaram-no isolado, com alimentação, ração e água. O burrinho ficou animado, pensando que havia sido premiado por ser tão bom. Esse tratamento durou menos de uma semana, já com ele em pé e com quilos a mais, resultante do descanso da jornada de escravidão.
Um dos homens do frigorífico informou que já estava na hora dele, foi o que entendeu ao ouvir o comentário próximo do estábulo que se tornou seu lar provisório. Apareceu um deles com uma corda, puxando-o para entrar num corredor estreito. Como o trataram bem durante os últimos dias, Valente de nada desconfiou, marchando feliz para seu último passeio…
No corredor, ele recebeu fortes duchas d’água e injeções. Em seguida, ouviu um barulho típico de uma serralheria, e apavorado constatou que era uma serra elétrica que “varria” toda a parte baixa daquele corredor. Por mais que tentasse se livrar da esguia serra, ele teria que se apoiar numa das pernas. O que efetivamente aconteceu…
Sem alternativas para sair do corredor da morte, Valente só sentiu a fisgada de dor indescritível quando a serra cortou simultaneamente suas duas patas traseiras, deixando-o apoiado apenas nas dianteiras. Tentou evitar que elas também fossem decapitadas no retorno rápido do instrumento cortante, porém não conseguiu: também as patas dianteiras foram dilaceradas, tornando-se partes anexas do corpo. A serra então parou de se movimentar…
Valente voltou a suplicar a Deus para que tivesse pena dele e o levasse logo. Lembrou-se do quanto apanhou do violento carroceiro até ficar prostrado no meio da rua, mas aquele castigo ali era triplamente pior. O ambiente todo estava embaçado à sua volta, e se transfigurou em um quadro negro após as órbitas dos seus olhos se desprenderem por força das convulsões de dor.
Os assassinos comentaram entre si que tudo devia acabar em duas horas e meia, e saíram dali sem nenhum remorso pela crueldade perpetrada.
*Essa maldade de decapitação das patas equinas é feita para que os animais suem bastante e expurguem o odor característico da raça na carne que será industrializada. O salame e salsicha que todos comem por aí…
Valente não sabe precisar quanto tempo tudo durou. No entanto, sentiu-se subitamente aliviado ao ver uma figura brilhante erguendo-o com facilidade e o levando dali para uma montanha repleta de árvores e flores. Para felicidade sua, constatou que estava com suas quatro patas e sem nenhum ferimento no corpo. Reencontrou seu pai e seu irmão, incrivelmente jovens e sadios, e relincharam estrondosamente a essência da liberdade eterna concedida a partir desse momento tão familiar…
O burrinho Valente ainda pôde ver aquela figura amiga se afastando discretamente de seu novo lar. Observou-o detidamente para saber quem era, e o motivo de tê-lo salvo de tanto sofrimento: o novo amigo tinha asas enormes nas costas, resplandecendo luminosidade feito uma estrela cadente. E tal uma estrela, saiu brilhante rumo a alguma outra provável missão de salvamento de mais infelizes escravos quadrúpedes…
João Carlos de Queiroz, jornalista Mtb-381-18/MT
Comentários estão fechados.