Monsenhor Gustavo: o dia em que um professor duvidou do aluno

O saudoso professor monsenhor Gustavo foi meu professor de Português na Escola Normal Oficial Professor Plínio Ribeiro, prédio atual da Avenida Mestra Fininha. O tradicional educandário funcionou anteriormente na Rua Coronel Celestino, antigo sobrado da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras.

Monsenhor se equivocou e cometeu uma baita injustiça ao pensar que pudesse ter copiado texto de determinado livro. Não concordei e recebi um zero redondo, punição que ele considerou exemplar pela audácia de ter duvidado de sua experiência.

No ato da devolução das composições (redações), monsenhor Gustavo fez troça espalhafatosa do meu texto, lendo-o em voz alta, para, em seguida, enumerar comentários ferinos.

– No geral, os trabalhos da classe estão bons. Mas este aluno aí (apontando pra mim) quis me enganar: copiou descaradamente este texto de um livro. É texto de um escritor famoso, tenho em casa. Vou trazer qualquer hora…

Reconheci meu texto logo no primeiro parágrafo, e certamente monsenhor esperava que protestasse, pois interrompeu a leitura para alfinetar:

– Pois então, senhor João Carlos: vai confessar ou não que copiou do livro?

– Não copiei, não, é meu!

Os novos colegas (estávamos no início do ano letivo) murmuraram alto, temendo represálias do professor. Os mais próximos aconselharam para confessar logo.

Muito à vontade no papel de leão de classe, monsenhor foi impiedoso ao anunciar a sentença para o que considerava clara insubordinação e desrespeito ao seu cargo de experiente veterano das Letras:

– Parabéns, garoto! Você ganhou zero redondo! Deve estar satisfeito, agora…

O zum-zum dos colegas ganhou alarde nos minutos seguintes, enquanto o professor, postado arrogantemente no tablado e olhando por cima dos óculos, de fundo de garrafa, observava minhas reações.

Na sequência, provocativo, monsenhor desceu do tablado e, em passos estudados, dirigiu-se à carteira que eu dividia com outro colega, entregando-me a lauda.

Triste ver o meu dedicado trabalho literário receber gigantesco zero, e, ainda por cima, circundado por letra vermelha…

Aquilo foi muito ruim, e a alternativa que encontrei {para obter pontuação} foi redigir precariamente nas próximas provas. Aí, sim, foi barreira bem difícil: equivale forçar alguém instruído a voltar a ser analfabeto.

Consegui reverter essa situação dois meses após, quando Monsenhor Gustavo inquiriu se, finalmente, eu estava disposto a confessar ter copiado o texto do livro.

Impaciente, aborrecido por problemas em casa, respondi que ele foi injusto comigo, e um dia iria provar. E o desafiei novamente para trazer o tal livro de casa, conforme prometera.

– O senhor fala e fala, monsenhor, mas não provou nada! Cadê o livro que iria trazer?!

Novos murmúrios preocupantes da classe: monsenhor era temido na escola inteira…

Perplexo, o professor ficou mudo, certamente aguardando que continuasse meu desabafo. E fui mais além, ao propor um teste:

– Estamos começando a aula, temos ainda uns 40 minutos… Passe um tema qualquer para que desenvolva um texto, professor. Se não for bom, o senhor nem precisa me dar novo zero: pode me bombardear de vez!

Ele veio em minha direção e sibilou frases secas, feito cascavel amigável:

– Ah… Então você quer uma nova oportunidade, é? Muito bem, garoto: escreva sobre aborto. Vou aguardar até tocar a campainha do recreio…

Inesquecível a sua expressão desafiadora ao retornar ao tablado da classe e empunhar o giz habilmente, feito um sabre implacável de samurai.

Enquanto escrevia no quadro negro, monsenhor direcionou olhares divertidos para toda a classe, cônscio de ter me pegado de vez. Aborto era tema praticamente desconhecido para um pré-adolescente de 13 anos…

Mal sabia o professor que eu “devorara” todo o arsenal literário e didático guardado pela minha mãe, Maria Eny; futura professora historiadora. Ela ainda cursava o Normal, na época.

Aborto, enfim, devia constar entre as coisas que li e reli, acondicionadas na estante do quarto. O cérebro registra tudo, é só desarquivar…

Para espanto de monsenhor Gustavo, concluí a redação antes de a estridente campainha da escola liberar para o recreio. Ele leu e releu a redação, retirando e colocando os óculos, de forma impaciente…

Na sequência, sorriso amarelo nas feições, monsenhor Gustavo desceu do tablado e me parabenizou pelo trabalho. Recebi, inclusive, nota 10 no lugar do antigo zero que ele aplicou na primeira prova de texto.

E até concluirmos o ano letivo, recebi mais notas graduadas, franco reconhecimento a uma análise justa dos meus trabalhos. Nunca mais monsenhor Gustavo ou os irônicos coleguinhas duvidaram de mim…

Conforme apregoa jargão popular do povo cuiabano, “Chupa essa manga!”]

OBS> Fui um dos grandes amigos do nobre monsenhor Gustavo na fase adulta. Muita admiração pelo mestre de português e pelo homem de Deus que foi.

Por João Carlos de Queiroz, jornalista

“Direitos Autorais Reservados. Quem duvidar, que apresente texto idêntico, publicado anteriormente

 

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