Meu amigo Tico ainda deve zombar dos vivos…
Toda criança possui um imaginário interessante, onde inclui lugares, objetos, animais e pessoas. Geralmente, entram nessa lista alguns amigos invisíveis aos olhos adultos, que, julgando-se mais sábios que os anjos sob sua guarda, impõem ferrenhas críticas à insistência dos inocentes. É quando eles argumentam estar apenas brincando com seus amiguinhos. Difícil entender uma criança conversando sozinha…
Desconfiados de supostas artimanhas da criançada, os pais costumam olhar em volta à procura dos amigos citados, mas nada veem. Esquecem-se dos amiguinhos que um dia também estiveram com eles. E então, via de regra, descarregam furiosa revolta cintada nos autores dessa presumível mentira deslavada. Corretivos ineficazes e injustos, pois criança não mente…
Foi assim que meu pai segurou ameaçadoramente a fivela do cinto quando solicitei para se afastar um pouco da minha frente.
“Tico está querendo me dizer algo, pai”.
Jeito impaciente no olhar e na voz, ele questionou quem era esse Tico. Ao invés de responder, limitei-me a apontar o dedinho em sua direção, perto da poltrona.
“Agora, ele está sentadinho bem aí, mostrando a língua… Ih, pai: Tico não gosta nadinha de você!”
O terrível cinto não chegou a deixar o aconchego da calça de tecido rude, uniforme da cooperativa. Porém, meu velho limpou a garganta e saiu da sala batendo a porta, ruminando rispidamente..
– Seu pai não está num dos seus melhores dias. Portanto, não o provoque mais. Senão, já sabe… – aviso preocupado de Notinha.
Minha mãe o obedecia piamente, e sempre contava sobre o dia em que foram apresentados e o casamento aconteceu.
“Lembro que, nos primeiros tempos, seu pai andava até armado, o que me apavorava. Depois, largou disso, ainda bem”,.rememorava.
Tico me instruiu para ficar quieto, se porventura meu velho voltasse a indagar sobre nossa amizade. “Não vai entender nada; ele nem me vê, pensa que não existo”. Eu acrescentei que também minha mãe jamais o enxergara andando pela casa.
“Mas ela vai ver um dia, pode apostar. Já seu pai, sei não… Acho melhor deixar como está…”
Foi Tico quem derrubou a caneca verde de café no colo do velho, divertindo-se a valer ao vê-lo saracotear o corpo para não se queimar. Refeito do susto, direcionou-me um olhar repleto de indagações, mas fingi nem perceber, aparentemente entretido em brincar com o tratorzinho, presente da madrinha.
“Diga a esse amiguinho seu que ele vai pagar por isso”, ameaçou. Então, ele acreditava, talvez estivesse vendo Tico.
“Não, ele não me vê. Aliás, nunca me verá. Só está tentando desabafar a própria raiva. Não é comum alguém derramar café quente no meio das pernas”, explicou o amigo.
Pedi a Tico para não fazer essa traquinagem nunca mais. “Se ele descobre mesmo que é você, vai querer descontar em mim…”
MEU IRMÃO mais velho nunca ligou a mínima para as histórias sobre Tico, tachando-me de “menino louco”. Bastava falar de Tico pra me ameaçar de surra, imaginando ser desculpa para brincar com seus carrinhos.
“Vou deixar o cordão enrolado de um jeito que só eu sei o segredo. Se você tocar em qualquer um deles, vai apanhar, estou avisando…”
Por um certo período, eu obedeci suas ordens, temeroso de cumprir as ameaças. Contudo, namorava os carrinhos estacionados e os cordões enrolados estrategicamente, imaginando como seria bom se pudesse brincar com eles. Tico me salvou disso:
“Pode pegar e brincar à vontade: eu sei o segredo dos cordões!” – informou de repente.
Durante meses e meses, esbaldei-me em puxar os carrinhos proibidos pelas calçadas próximas, ou no corredor lateral, de onde escutava o tac-tac-tac incessante da máquina de costura de Notinha. Brincava até cansar, momento em que Tico ressurgia do nada para dar uma mãozinha.
“Agora, deixe-os no mesmo lugar, que vou arrumar os cordões”, dizia o amiguinho..E, espantosamente, coisa de segundos, tudo voltava a ficar como o mano deixara horas antes. Tico devia ser mágico!
Ao voltar da aula, no final da tarde, o mano Zé já ia direto checar se suas ordens foram obedecidas. Olhava os carrinhos e respectivos cordões de todos os ângulos, para finalmente dizer: “Continue obediente, pirralho!”
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Depois que completei mais alguns anos, tornando-me menino entendido, Tico simplesmente sumiu. Foi embora sem se despedir, apesar de ter antecipado despedida uns tempos atrás, ao dizer:
“Você já não precisa tanto de mim. Mas estarei sempre por perto, tenha certeza”. Ainda pediu para não sentir saudades, pois não curtimos saudades de quem jamais partiu, frisou.
Analisando isso, imagino que deva estar aprontando poucas e boas na esfera invisível, solidário às minhas tristezas e comemorativo às vitórias. Oxalá retorne para que possamos brincar novamente.
ENFIM, ter um amigo que nem Tico é tudo que alguém precisa para não sentir tanta solidão; ou imaginar ser habitante de um mundo triste, entremeado por desértica peregrinação de seres sem alma.
Talvez Tico reapareça um dia para me contar sobre o período em que aparentemente desapareceu do meu campo visual, a exemplo do que fazia com os demais estranhos.
Sem dúvida, relembrando os folguedos de outrora, e as aprontações, Tico foi um amigo maravilhoso nas fases mais importantes da minha vida. Pena que apenas eu conseguisse vê-lo…
Por João Carlos de Queiroz
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