Lembram-se do gorducho malvado da Escola Normal? Ele me torturou duas vezes!

MONTES CLAROS-MG, anos 60 – No velho casarão da Rua Coronel Celestino, a Escola Normal fez história respeitosa. Estudei por lá durante anos, na fase primária. Ainda recordo das ternas professoras Cleonice e Berenice, compreensiva aos meus frequentes deslizes. Berenice também ministrou aulas particulares de matemática, a pedido de minha mãe. Droga de matemática! Nunca me dei bem com números…

Foi por essa época que redigi meu primeiro conto, surpreendendo-me pelo impacto do simplório escrito infantil. Fui parabenizado pela diretoria, e recomendado a passar  aquele texto a limpo, pois seria um dos destaques no estande da escola na Exposição Agropecuária e Industrial. Não entendi patavinas, meio duvidando de tudo aquilo…

Só para explicar rapidamente, discorri sobre a aventura fatídica de uma mariposa. Ao fugir da chuva, a pobrezinha imaginou estar a salvo dentro da primeira casa aberta que encontrou. Pior: lá dentro, cismou de procurar o lugar mais quente possível, e o mormaço da cozinha a atraiu.

O seguinte passo errado foi tentar aquecer suas asinhas em cima da panela fumegante. Infelizmente, o vapor não foi receptivo à frágil visitante, e, em segundos, suas asinhas enrugaram, tornando-se inúteis. Inevitável a queda fatal dentro da sopa…

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Não cheguei a comparecer ao estande da escola para conferir se meu conto realmente estava lá. Mas meus pais tiveram notícia dessa exposição. Pena que a ‘fritura da mariposa’ não alterou favoravelmente minhas notas em matemática, sempre péssimas…

NOVA MALVADEZA DO GORDUCHO DA ESCOLA NORMAL

Preâmbulos à parte, ainda na qualidade de aluno da velha Escola Normal, comentei ter sido obrigado a ingerir um saco inteiro de tamarindo, ordens ameaçadoras de um colega parrudo, corpanzil agraciado por farta banha.

Por dias, após ingerir quantidade excepcional dessa azeda frutinha, fiquei mal do estômago, sentindo enjoos frequentes. Nem podia lembrar do gosto de tamarindo: trauma gastronômico…

O ruim de tudo é que o dito saco de banha humana não parou de me atazanar a paciência, perpetrando mais provocações [cascudos]. E eu, idiota, sempre caladinho: o medo dele se vingar impôs silêncio…

Quando pensava que a coisa ficaria nesse tom, eis que o gorducho voltou a me atacar de surpresa um dia, depois da aula…

Feliz por retornar ao lar, caminhava displicentemente pela calçada frontal à primeira casa de Montes Claros. De repente, escutei seu grito ardiloso, e, antes que entendesse algo, eis que uma mão de alicate atracou-se violentamente ao lóbulo da minha orelha esquerda. Que dor!

AIIIIIIIIII!!!

– Doeu, é? Mas vai doer por bom tempo, seu mané! – gritou o gordão, torcendo impiedosamente minha orelha.

Foi tanta a dor que virei de lado, quase caindo. Mesmo assim, o maldito não se condoeu do meu suplício, sequenciando mais puxões violentos.

Atravessamos as praças da Matriz e Esportes e subimos pela longa Rua Belo Horizonte, sem que ele me soltasse. Eu morava próximo ao Colégio São José, bairro Roxo Verde.

Não consigo imaginar o porquê de ninguém ter me socorrido, apesar dos gemidos frequentes que emiti e dos passos trôpegos, encurvados, em face dos ininterruptos puxões de orelha.

Tinha então uns sete anos, no máximo; já o gordo torturador, apresentava dois palmos acima de mim, sem falar nas espaçosas dimensões laterais e no avantajado bundão de sacola…

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Nesse inesquecível percurso, pensei estar a caminho de algum cativeiro, a fim de ser torturado triplamente à vontade. Pela violência das torcidas de orelha, devia estar já sangrando. Insensível, o torturador cantarolava alto, feliz da vida…

– Não grite nem geme, “sua coisinha”! Se gritar, aí puxo mais! – avisou. Tive que aguentar a dor…

Torci para chegar logo em casa, porém na dúvida se isto findaria com aquela tortura.

Também invoquei Deus para minha mãe ou meu pai aparecer, ou o mano mais velho. O problema é que o mano Zé não era corpulento, e o gordão poderia intimidá-lo.

Perto de casa, cruzamos com alguns amiguinhos com quem soltava araras [papagaios]. Devem ter imaginado que aprontei e estava sendo punido.

Posicionando-se corajosamente em frente ao carrasco, um deles entendeu o meu drama, intimando o gordo a me libertar.

– Solte ele, seu covarde! Olha o seu tamanho!

Há de se considerar que meu nobre amigo ousou enfrentar um ogro corroído por ódio intenso, aproveitador da fraqueza infantil. Portanto, à falta de estrutura corpórea similar à do carrasco, ele não pôde me defender à altura.

Aproveitando-se disso, o gordo o derrubou bruscamente no cascalho da rua, como se fosse um traste qualquer. Os demais amigos correram assustados…

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Longos minutos depois, minha casa rosa surgiu esperançosa do lado esquerdo. Arrisquei retesar meu corpinho rumo ao portão, na esperança de que o gordo me soltasse, entendendo que a sessão de tortura acabara.

Ele sabia que eu morava ali, e captei seu olhar desconfiado ao se aproximar da residência, checando se havia alguém no alpendre.

– Mãe! – gritei como última alternativa de socorro.

– Vou indo, filho! O portão está trancado. – respondeu.

Ao ouvir a voz de minha mãe, o brutamontes de banha empreendeu salto de alerta, libertando-me finalmente. Aí, saiu correndo disparado em direção ao estreito viaduto ferroviário, divisor dos bairros Roxo Verde e Cintra.

Só de imaginar que, no dia seguinte, ele estaria a postos na Escola Normal, fiquei amedrontado.

– Quero mudar de escola, mãe! Por favor! Não vou estudar lá mais!

Que houve, filho? É uma boa escola! Logo, logo você estará numa novinha! [sede da Avenida Mestra Fininha].

– Não quero! – repeti chorando.

 

NO DIA SEGUINTE, minha mãe foi conversar com a professora, informando sobre minha insatisfação com o educandário. O gordão ficou encolhido num canto da sala, olhando desconfiado pra todos os lados.

– João não está gostando mais de estudar aqui? Alguém sabe o motivo? – perguntou incisiva a professora.

Ela disse desconhecer, levando-a à sala do diretor, que ouviu atentamente seu queixume.

– Vamos perguntar aos seus coleguinhas! – disse o diretor.

Posicionando-se no tablado, ele indagou se alguém tinha me maltratado. E explicou meu trauma:

– Joãozinho quer sair da escola, e está muito assustado… Vocês sabem o motivo?

Houve um minuto de silêncio constrangedor. Depois, veio a confirmação:

– Eu sei! – gritou um coleguinha.

O gordão o encarou ameaçador, mas o gurizinho foi corajoso. O diretor entendeu que teriam de conversar a sós, convidando-o para acompanhá-lo à diretoria.

O menino saiu da classe com o diretor. Não tardou para que retornassem.

Minha mãe, sem saber exatamente o que acontecia, ouviu do diretor a terrível explicação:

– Esse garoto aí (apontou para o gordão) anda judiando de Joãozinho. Ontem, saiu daqui puxando sua orelha! Nem imagino outras covardias que possa ter feito com essa criança, aproveitando-se de sua fragilidade.  Já liguei para os pais dele; estão vindo para conversarmos…

O gorducho chorava copiosamente, tremendo que nem vara verde. Presumiu que seria castigado exemplarmente pelos pais.

Menos de uma hora após, seus pais chegaram, apresentando-se na sala com o diretor. Dali saíram todos, inclusive o torturador gorducho. Nunca mais o vi na Escola Normal…

Nem preciso dizer o alívio que senti por ter ficado livre daquele malvado asqueroso.

Por João Carlos de Queiroz, jornalista

Foto: este autor quando criança

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