Índios do Xingu queriam fazer sopa com piloto que “violou” espaço aéreo. Aviador se tornou prisioneiro após aterrissagem de emergência

Caso sucedeu há décadas, mas ainda hoje é comentado por aeronautas de todo o país. O piloto mineiro Leonardo José Vieira disse que esse episódio mereceria um livro. "Estive perto do inferno e Deus me resgatou"

O aviador mineiro Leonardo José Vieira (abaixo) é um apaixonado por tudo que voa. Mesmo na condição de piloto comercial de modelos monomotores e turboélice, ele foi instrutor de aeroclubes em Belo Horizonte-MG e checador do antigo Departamento de Aviação Civil (atual ANAC). As aulas eram ministradas no Aeroporto Carlos Prates, ainda hoje no foco de polêmica para ser desativado e se transformar numa área de lazer… 

                                                                                                                                             

No início da carreira aviatória, era comum o bocaiuvense Leonardo José Vieira realizar voos free-lancer, até mesmo para dar continuidade à atividade profissional.  Foi assim que embarcou no dia 2 de julho/1983 no Cessna Skylane 182, em Belo Horizonte-MG, prefixo PP-SJK, propriedade do empresário goiano Roberto Correia Leal, rumo ao garimpo Peixoto de Azevedo-MT. Seria mais um voo normal, pensava Leonardo. Só que não foi…

O problema é que o piloto enfrentou chuva pesada quando já sobrevoava o Parque do Xingu. Preocupado com a instabilidade do leve aparelho em meio à forte pancada chuvosa, ele optou em escolher uma pista para aterrissar e aguardar que o temporal cessasse. Checou a carta aérea e localizou uma pista próxima à aldeia Diauarum, iniciando os procedimentos de pouso.

Antes de tocar o solo, Leonardo fez um voo de averiguação da área, aparentemente constatando a normalidade do local (pista em bom estado). Ademais, não havia nenhuma restrição na Carta Aérea. A própria aldeia estava praticamente deserta, segundo observou lá do alto.

O Cessna 182 veio então para pouso, tocando o chão cascalhado e de piso firme. “Boa pista”, pensou Leonardo. Deixou que a aeronave corresse até o final da malha compactada, estacionando-a de lado. Aí, desligou os motores e abriu a porta. Qual não foi sua surpresa ao ver que os índios já haviam cercado o aparelho, armados com lanças e machadinhas.

“Aquilo tudo foi um horror, cara! Eles me chutaram e ordenaram que ficasse quieto, de joelhos, rosto colado ao chão. Pensei comigo: vão me matar! Até aguardei a pancada mortal da machadinha, mas não aconteceu. Segundos horripilantes… O pior era a gritaria que fizeram enquanto reviravam o avião, jogando minhas roupas no meio daquele cascalho enlameado. Rasgaram todas as peças, incluindo sapatos. Fiquei totalmente nu, conforme nasci…”

Ato contínuo, sempre sob cutucadas de lanças, o piloto foi conduzido até uma das tendas da aldeia, sendo instruído para ficar quietinho ali. Se desobedecesse…

“Eles emitiam uns grunhidos que eu não entendia direito, apenas que devia acatar as ordens. A cara que faziam… Mal mexia os pés para um dos lados, aparecia um índio enfurecido, de lança em punho, cutucando-me para ficar próximo da porta da aldeia. Não permitiam que entrasse na tenda. Ainda hoje, recordo o frio e fome que passei durante o longo dia e noite, cabeça a mil. Só não passei sede porque aparei a água da chuva. Não via nenhuma chance de me safar daquele sequestro”, relembra Leonardo.

 

Tiritando de frio, Leonardo assistiu preocupado o vai e vem dos índios em aparente preparo festivo durante toda a manhã e à tarde. Atividades que ganharam maior movimentação no cair da noite e madrugada afora.

Os indígenas se revezavam nas tarefas, ora descascando mandiocas, cortando legumes, lenha ou ajeitando uma grande fogueira armada no centro da aldeia. Ali, dependuraram um caldeirão, o que apavorou o piloto, prenunciando qual seria o cozido do dia…

“Estavam preparando um banquete, evidentemente, mas eu não via nenhum animal abatido. E o fato de terem me deixado nu reacendeu as suspeitas de que pretendiam me devorar. Já havia lido muita coisa sobre índios canibais no Xingu, do que são capazes quando estão revoltados com os brancos. Também pintaram o corpo com sinais de guerra ou festa, não sei. Tudo muito esquisito…”

Leonardo não errara na sua avaliação sobre qual seria seu destino na aldeia: os índios caiabis realmente estavam em festa e pretendiam transformá-lo numa suculenta sopa. A Festa da Cabeça dos taiamats (guerreiros) na tribo dos caiabis não era celebrada desde 1973.

A revelação sobre o pretendido desfecho tétrico do seu sequestro foi feita pelo índio caiabi Paié e pelo cacique caiapó Raoni Mekranoti, do Xingu. Segundo informaram, é tradição antiga a realização da Festa da Cabeça (Iauaci), momento em que os guerreiros – pintados de vermelho – cantam e dançam, passando de mão em mão a cabeça descarnada de um branco, regada a aguardente de mandioca. Esse procedimento é repetido até que a cabeça fique completamente seca.

O RESGATE

Como é praxe nesse ritual, os índios caiabis convidaram outros caciques da Nação Indígena do Parque do Xingu para participarem da festa. A decapitação do piloto Leonardo Vieira aconteceria nas primeiras horas da manhã. Vários convites foram expedidos e, por sorte, um deles caiu em mãos de um cacique mais consciente, amigo do pessoal da Funai, que alertou a diretoria do órgão: “Se não agirem rápido, vão matar o piloto”.

Na verdade, os índios queriam também as cabeças dos coronéis Ivan Zanoni, Roberto Guaranys e a do coronel Anael Lemos Gonçalves, da Funai. Os silvícolas estavam revoltados com a política do órgão, já tendo externado desejo de que esses assessores do presidente do órgão, coronel Paulo Moreira Leal, fossem demitidos.

Correndo contra o tempo, o diretor do Parque do Xingu, Cláudio Romero, acompanhado do sertanista Cláudio Villas-Boas, empreendeu marcha ininterrupta rumo à aldeia a bordo de uma voadeira (barco motorizado). Viajaram a noite inteira, chegando ao amanhecer à aldeia dos caiabis.

Inicialmente, eles não foram autorizados a ir até o piloto Leonardo Vieira, que permaneceu da mesma forma (nu) assistindo o grupo conversar sob uma fina chuva da manhã. Após 30 minutos, o sertanista Cláudio Villas-Boas teve permissão de ir ao seu encontro, levando um mamão fresco.

“Foi o melhor mamão que comi em toda a minha vida: estava faminto, sem nada no estômago desde o dia anterior, quando me prenderam”.

Em tom confidencial, o sertanista instruiu Leonardo a ficar atento à aproximação de um EMB-Bandeirante, avião turboélice da Força Aérea Brasileira. “Vai aterrissar e virar bem ali (disfarçadamente, apontou para o final da pista) com a porta aberta. Você sai então correndo para lá e não pare, mesmo que os índios saiam atrás e ordenem isso. Corra o máximo que puder. É sua chance de liberdade”.

Leonardo disse que, a partir daí, começou a prestar atenção em qualquer ruído estranho, e logo ouviu o típico ronronar do Bandeirante se aproximando. Alguns índios também perceberam, levantando-se da roda de conversa mantida no centro da aldeia.

“O “fabiano” (FAB) se aproximou determinado, aterrissando curto e com motor sempre em alta. Saí correndo, sem olhar pra trás, apesar de ouvir os gritos dos índios ordenando que parasse. Até flechas e lanças foram lançadas em minha direção, mas nenhuma me acertou, felizmente”.

Leonardo teve receio de não conseguir chegar até o avião, que já efetuara giro rápido na pista e mantinha a portinha aberta para seu embarque. Um dos soldados o ajudou a subir rápido, e antes mesmo que entrasse direito no cabine, o comandante acelerou ao máximo para decolar, sob saraivada de lanças. “Ainda avistei dois índios próximos à portinha da aeronave, tentando abortar a decolagem. Foi indescritível o alívio que senti ao perceber que estávamos voando para longe dali…”.

AVIÃO RETIDO

O sertanista Cláudio Villas-Boas tinha bom relacionamento com o cacique da tribo e permaneceu por lá para tentar amenizar a situação. Comentou que houve um início de hostilidade com sua pessoa, pois os índios se sentiram enganados. “Conseguiu convencê-los de que também foi traído, não sabia nada sobre a vinda do avião da FAB. Na verdade, ele arriscou a vida por mim”, reconhece Leonardo.

Leonardo foi até à Base Aérea de Belém do Pará enrolado num cobertor, onde foi providenciado roupas militares. “Tudo que tinha (documentos pessoais, relógio, óculos) ficou naquela aldeia maldita. É uma experiência que não desejo para meu pior inimigo”.

A Funai tentou {por duas vezes} que os índios liberassem o avião, sem sucesso. Para que isto acontecesse, exigiam a demissão dos assessores diretos do órgão (citados acima). “É uma das versões comentadas na época. Porém, uma outra versão é que os caiabis queriam é ficar mesmo com o aparelho, independente de a Funai demitir ou não os que eles consideravam seus inimigos. O proprietário da aeronave (Roberto Leal) também tentou reaver o Cessna Skylane várias vezes”, observou Leonardo Vieira.

Nas tentativas de negociação empreendidas pela Funai, os índios afirmaram não ter cometido nenhuma violência física contra o piloto. O que foi desmentido por integrantes da própria aldeia que se encontravam em Brasília-DF. “Só eu sei o que sofri nas mãos deles: são maldosos ao extremo. Frios, insensíveis. E iam me matar covardemente. Minha cabeça serviria de taça de bebida. E meu corpo, de jantar”.

Por João Carlos de Queiroz, jornalista , com informações do Correio Braziliense e Jornal do Brasil

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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