Faça do seu capacete um bom saco de dormir…

Viajar de moto é uma das coisas mais deliciosas que experimentei. Lógico que, vez ou outra, enfrentei imprevistos: trava repentina de motor superaquecido (por forçosa velocidade serra abaixo); queima de vela; quebra de cabo de embreagem, acelerador, freio dianteiro, etc…

Tive sorte, aliás, de não furar nenhum pneu, ou de quebrar a corrente. Já numa viagenzinha de bicicleta, isso aconteceu ao descer a serra de Bocaiúva. Um “sai da frente que lá vou eu!!!” desesperado!

Enfim, ao planejar qualquer esticada às cidades próximas a MOC, eu juntava as ferramentas que julgava serem úteis para resolver possíveis percalços mecânicos da anãzinha estradeira.

Ao sair, até imaginava levar uma bombinha de colagem instantânea da câmara de ar, similar a spray, porém sequer a adquiri. Hoje, penso que fui sortudo: nunca nenhum pneu desinflou fora da cidade.

Um ex-colega da TV Manchete, cinegrafista Rafael, apaixonado por pescaria, contou que o melhor do passeio era consertar sua velha Variante. Veículo empacador, definiu. Não gostava de voltar pra casa.

– Sempre pifa algo. Se é a bobina que esquenta e corta o motor, basta molhar uma toalha e envolvê-la! Se a ignição falha, o jeito mesmo é empurrar! – rememora. – Só não pode é faltar cachaça…

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Lembrando disso, fui uma vez a Coração de Jesus na minha pequena Yamaha Mini Enduro, acompanhado dos amigos Afonso Celso e Eduardo Lopes. Na época, anos 70, a estrada de acesso a Coração de Jesus ainda não era asfaltada, miscelânea de areia e cascalho.

No trecho asfaltado da BR que liga MOC a Pirapora, logo nos primeiros quilômetros, derrapei e caí diante de um carro que vinha bem próximo. O veículo estremeceu a lataria pelo esforço de frenagem súbita. Por ser 4h da madruga, tudo estava muito escuro, e seus faróis altos me ofuscaram repentinamente.

Somente depois percebi quase ter sido atropelado por um Toyota Bandeirante, que continuou com os faróis ligados na minha cara assustada. Foi involuntário vomitar praguejamento nervoso, e ouvi insultos parecidos do motorista, ao arrancar veloz.

Meus amigos iam mais à frente, e nem perceberam meus apuros…

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Afora esse susto, o restante da viagem transcorreu tranquilo: a Mini Enduro provou ser potente ao vencer rampas cascalhadas íngremes; incrível a performance do pequeno motor 2 Tempos!

Na saída de Coração de Jesus, à tardezinha, ao empinar a roda dianteira para fazer show de perícia, a moto derrapou na areia solta da praça, enroscando minha calça na corrente.

Não sei, sinceramente, qual foi o pior: a dor que senti {proveniente de corte profundo na canela}, ou a saraivada impiedosa de vaias da molecada. Fui cercado por uma turba de gozadores!

Felizmente, os amigos viram essa cena e vieram me resgatar, cortando o tecido enroscado da calça.

– Vamos embora agora! Muita gozação! – disse Afonso.

O problema é que a escuridão nos colheu em plena estrada. Tínhamos que improvisar acampamento, enfrentar a longa noite fria da região, mês de junho.

Esperto, sugeri que os capacetes poderiam ser usados como travesseiros, protegendo o rosto do frio. Dormimos os três ao relento, acalentados pelo calor da própria respiração. Se pintasse uma cobra ou onça por ali…

No dia seguinte, o Sol descortinou luz fraca, mas lindamente dourada, refletida nos morros próximos. As árvores e vegetação rasteira estavam umedecidas de orvalho, assim como nossas roupas. Muitos pássaros louvando mais um dia!

– Vamos, pessoal, que a estrada nos aguarda! – comandou Eduardo Lopes.

As duas motos pipocaram disposição viajante sem moagem, poluindo o ar silvestre de forte fumaça azul. Minha Mini Enduro colaborou mais: eu adicionara óleo 2 Tempos diretamente no tanque, não confiando no sistema de lubrificação automática, o tal de AUTOLUBE.

FALTOU, claro, um bom café da manhã para nos animais em dobro, mas naquela região erma, nem sinal de boteco, venda, armazém…

O bom de toda essa aventura foi que a viagem de volta a MOC transcorreu serena.

– Ué, filho: cadê o outro pedaço de sua calça? Está suja de sangue por quê? – perguntou minha mãe (Maria Eny) ao abrir o portão de casa para me receber.

Por João Carlos de Queiroz, jornalista

 

 

 

 

 

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