DAS SOMBRAS, À LUZ: deficientes visuais, do Legislativo de Cuiabá, demonstram esplêndida determinação feliz

Imagine uma vida em que tudo é escuridão aparente. Quando as retinas não captam imagens para que o cérebro as transforme em paisagens transmutantes de vida.  O cotidiano de um deficiente cego pode ser definido mais ou menos assim. Mas não para aqueles que conseguem "enxergar" além de pontos comuns, toldados pela deficiência adquirida ou de nascença. É quando passam a visualizar o mundo de forma profunda, com os olhos da alma... Abaixo, a história de dois heróis comuns do gênero, sabiamente inseridos nos trilhos da normalidade existencial...

Por João Carlos de Queiroz, jornalista  – Odenilton Júnior Ferreira dos Santos e Mauro Germano de Oliveirasão colegas de trabalho na Câmara Municipal de Cuiabá. Nada excepcional aí, lógico. A não ser pelo fato de que ambos são deficientes visuais, detalhe notoriamente complexo. Porém não impeditivo {para eles} à realização dedicada de funções técnicas no Departamento de Informática da Casa de Leis. Enquadram-se na categoria de servidores de carreira, cumpridores de todas as normativas funcionais. Em síntese, excelentes técnicos.
Mauro Germano: exemplo de dedicação profissional
Foto: Secom da Câmara Municipal de Cuiabá
Odenilton e Mauro são os primeiros a registrar presença diária no Legislativo, atentos a tudo que acontece durante o expediente. Acostumaram-se a uma rotina prazerosa no desempenho das tarefas que lhes são atribuídas, a maioria delas capaz de deixar atarantado quem enxerga normalmente. Daí os elogios repetitivos, reconhecidamente merecidos, de quem assiste o desempenho dos dois técnicos nos computadores.
As histórias da dupla têm conotação quase que homogênea, em termos de arrocho profissional. Divergem apenas em alguns quesitos particulares e no âmbito religioso. Odenilton, por exemplo, 34 anos, é natural de Cuiabá, casado com Carla Magna, professora de Matemática na rede pública estadual. Tem uma filha de 18 anos, Rita de Cássia, deficiente auditiva. Odenilton perdeu a vista parcialmente a partir dos 17 anos de idade, e aos 22 estava completamente cego, vítima de uma patologia denominada Uveite Crônica.
O apoio dos pais cuiabanos, Odenir Ferreira dos Santos e Sandra Maria da Conceição Santos, foi fator importantíssimo para que ele pudesse enfrentar o desconhecido inoportuno das sombras que aportaram mansamente em sua vida. Desafio inusitado para o jovem, que enfrentara outros, na adolescência. A constatação de que ficaria cego foi o pior dilema, comenta, sem denotar nenhuma revolta. É fator superado, existe um infinito de perspectivas mais interessantes à frente, deixa entrever.
“Aos 17, percebi que minha visão estava comprometida, perdia nitidez gradual, sempre embaçada. Anos depois, já nem conseguia ver nada direito. Até que a cortina do teatro de cura caiu, e “desligaram” a luz esperançosa: estava 100% cego. É o mesmo que você abrir os olhos pela manhã e ter a sensação de que ainda é noite…” – palavras ditas quase que impessoalmente.
Odenilton só transparece emoção ao discorrer sobre o apoio familiar o carinho amoroso recebidos daquela que viria a ser sua esposa e companheira, Carla Magna, professora da rede estadual. Carla não é portadora de nenhuma deficiência. Segundo enaltece, ela é referência incentivadora naquilo que considera uma vida estabilizada e feliz. “Meus pais, a esposa Carla Magna e minha filha, Rita de Cássia, formam elo de motivação crescente para que outras luzes ocupem esse espaço incômodo que a cegueira acarretou”.
Ao contrário do que muitos poderiam imaginar, a deficiência visual não impediu Odenilton de cursar uma faculdade e se formar em Análise e Desenvolvimento de Sistema (Univag), especializando-se em Gestão Pública. Graduação que tem orgulho de falar, pois o âmbito da tecnologia sempre foi seu foco motivacional – afirma – no transcorrer das fases de estudante, oportunizando expansão na área profissional.
“Aproveito as oportunidades que a vida tem me facultado. Creio que o mais importante é desfrutar de paz entre meus familiares e no desempenho da profissão. Afinal, qualidade de vida é primordial na vida de qualquer ser humano. Desfrutar das boas coisas da vida é sempre salutar”, é sua dica pessoal.
Odenilton ainda é vice-presidente da Associação dos Cegos de Mato Grosso, entidade na qual pretende colaborar para a concretização de várias metas dos associados. “Os direitos do deficiente visual nem sempre são respeitados. Nem deles nem dos demais deficientes. O propósito é para que tenhamos acesso àquilo que deveria ser regra imprescindível para quem convive com tais limitações. Não sou do tipo que fica olhando para as dificuldades, a ponto de impor desânimo precoce a eventuais tentativas de superá-las. Costumo optar por caminhos virgens, não trilhados, independente do quanto possam ser difíceis…”
Durante a entrevista, Odenilton não desgrudou os olhos do computador, fator intrigante para quem nada vê nada diante de si. Na verdade, ele não vê, mas escuta; “enxerga” os dizeres da tela computadorizada por meio de um sistema sonoro (leitor de tela) interligado à máquina. Os fones de ouvido são inseparáveis auxiliares nas horas de expediente dos dois técnicos.
Uma das surpresas é saber que Odeniton não tem religião, apesar de afirmar ter tido experiências em áreas distintas de religiosidade. Confessa que já experimentou ser espírita, budista, católico, evangélico, até finalmente desistir de tudo. E sem ironizar o próprio comentário, diz que a figura de Adão e Eva, a seu ver, assimila-se às das crenças da mitologia grega.
“Devo salientar que a questão de não ter hoje nenhuma crença religiosa não se deve ao fato de ter ficado cego. Admiro muito quem tem fé. Meus pais são evangélicos fervorosos. Mas o conhecimento científico me levou a optar por isso. Devo esclarecer também que não sou ateu, pois ateu nega a existência de Deus. Só não acredito em religião. E defendo aquilo em que acredito”.
MAURO GERMANO DE OLIVEIRA
As opiniões de seu colega de sala, Mauro Germano de Oliveira, divergem muito no quesito religioso. Mauro não apenas é católico, como detentor de fé esplendorosa em Deus. “Tem católico que nem vai à igreja, ou sequer reza um Pai Nosso antes de dormir ou pela manhã, em agradecimento a mais um dia de vida. Eu já prezo tudo que envolva essa devoção divina. Sinto prazer de conversar com Deus, de pedir que estenda sua proteção a mim e à família inteira, aos amigos, colegas… Deus é ser de luz vital em nossas vidas, jamais podemos nos esquecer”.
Identicamente ao colega Odenilton, Mauro também é servidor de carreira do Legislativo cuiabano, concursado. Aos 44 anos, surpreendentemente parece ter bem menos. Residia em Acorizal com os pais Geraldo Martins de Oliveira e Joana Dias de Oliveira. Já mora em Cuiabá há 25 anos. Seus pais não têm qualquer anomalia física, apenas ele e seu irmão mais velho, Marcino Benedito de Oliveira. Ambos nasceram com deficiência visual, denominada retinosa pigmentar.
 
“Não sei qual situação é mais difícil: nascer cego ou, depois, descobrir-se cego. Há quem pense que a cegueira posterior é melhor, pois possibilita curtir as belas coisas do mundo. Pelo menos por algum tempo. E há também quem diga que o melhor é ser privado de visão ainda no útero, melhor forma de se acostumar a uma situação que irá perdurar pelo resto de seus dias. O fato é que os designios de Deus não podem ser contestados, e, por consciência de filhos, devemos procurar entendê-los com serenidade e aceitação. Até mesmo para poder ir ao encontro da felicidade que todo ser humano merece”, explica Mauro Germano, voz pausada. Mal move a cabeça, igualmente compenetrado na leitura ditada do que está exposto na tela do computador.
Mauro fez questão de ressaltar que sua vida conjugal é sinônimo de felicidade completa. “Casei-me com Helen Souza, 39 anos, pedagoga, professora, sem deficiência similar. Por enquanto não temos filhos, mas isso não é impeditivo de realização no nosso convívio harmônico. Aguardamos o desfecho do destino que Deus traçou para nossas vidas sem qualquer cobrança, pautando nossas ações diárias no companheirismo amoroso e em tudo que puder ser do agrado do Senhor”.
O técnico legislativo (função em que está lotado no RH) anuncia que é praticante de modalidade esportiva “Futebol de 5”, antigo futebol de salão. Os atletas têm os olhos vendados para a disputa, tendo em vista que alguns são deficientes parciais. A venda garante que todos estejam em condições idênticas na quadra.
“Jogo há muitos anos, gosto demais. É uma confraternização bem saudável, sem que o fator da deficiência visual esteja em destaque. Na quadra, somos apenas atletas em busca da vitória, ainda que ela esteja sendo conquistada a cada minuto que vivemos. Não somente para quem tem deficiências de qualquer modalidade, mas para todos os humanos. Viver, por si só, é uma grande aventura, é inegável”.
Enquanto o colega Odenilton não nutre nenhuma simpatia por qualquer desfecho da situação do ex-presidente Lula, somente comentando que “a Justiça tem de ser aplicada de maneira abrangente a todos, sem distinção”, Mauro Germano de Oliveira foi enfático ao externar que não deseja ver o ex-metalúrgico e ex-presidente atrás das grades. Não entrou em detalhes sobre o porquê dessa postura defensiva a quem a Justiça já condenou por atos de corrupção. “Não quero que Lula seja preso”, é a única frase que diz acerca das acusações que têm rondado a vida de Luís Inácio da Silva. “Bem, tenho de ir agora”, avisa educado minutos após, afastando a cadeira e finalmente retirando os fones de ouvido.
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Já era perto das 13:30h quando ele e o colega Odenilton, após desdobrar a bengala, deixaram a sala do Departamento de Informática, embrenhando-se vagarosos no corredor iluminado do Legislativo. Sempre retribuindo os cumprimentos dos demais servidores, acessaram as escadas para logo ganhar o saguão principal do órgão legislador. Em seguida, venceram os 20 metros que separam o prédio da Câmara do passeio da Rua Barão de Melgaço, via de acesso acalorada pela luminosidade intensa do sol, naquele horário.
Mauro e Odenilton se despediram de forma animada e sorridentes, antes de reiniciarem a marcha, calçada afora. Cada qual rumo à paz da felicidade reinante no lar doméstico…
 
 

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