Cuidado com quem bate à porta à meia-noite…
Finado tio Ambrósio, sitiante famoso em Pires e Albuquerque, distrito acanhado do Norte de Minas Gerais, tornou-se conhecido por ser detentor de simpática prosa sobre ‘causos’ interessantes.
Temas relacionadas à ala sobrenatural tinham primazia em suas narrativas. Alguns diziam, a título de provocação, ser pura invencionice de sitiante setentão. Ao que Ambrósio rebatia irônico: “Acredite se quiser…”
Pois foi lá, em ‘Alto Belo’, atual nome de Pires, para contrariedade de moradores antigos, que meu tio narrou ter enfrentado lobisomens, mulas sem cabeça e outros seres estranhos.
Os adultos o ouviam respeitosamente, enquanto os mais jovens, apesar dos olhares atenciosos, explodiam em gargalhadas. Já as crianças, corriam apavoradas ao ouvir a simples palavra “assombração. Seria mais uma noite de pavor…
Com público cativo na sala de estar do sítio, o carismático parente desalinhava agilmente sua memória cansada da labuta campestre, contando e recontando aventuras.
Muitas horas avançadas da noite se esvaeceram em deleite prazeroso e, também, de temeridade apreensiva em face das narrativas macabras.
Íamos dormir com a camisa impregnada de cheiro de querosene, pois se tornava irresistível escutar o final de cada “causo”. Nos anos 60, rústicas lamparinas se tornaram alternativa comum à falta de energia elétrica.
Certa vez, Ambrósio contou ter passado sufoco angustiante ao atravessar o Rio Verde, momento em que um gigantesco homem-lobo veio em sua direção.
– A água borbulhava ao redor dele. Não interrompi a travessia: firmei o facão na boca, seguro por ambas as mãos, e continuei andando rumo à margem.
Mesmo assim, recorda, o bicho demonstrou intenção de atacá-lo. “Será que a mandinga do facão não surtia efeito?” – pensou.
Ambrósio ouvira dizer que lobisomens temem arma branca, principalmente as maiores. Basta prender na boca…
Sem mais nem menos, o bichão deve ter visto a lâmina cintilando no lugar, pois uivou forte e quase saiu voando por cima da água, ansioso para fugir. Ainda uivando ameaçador, escalou o barranco e adentro pela mata. Deu certo a mandinga…
Ambrósio ainda enfrentou aparições diversas na região do capão, túnel de mata que utilizava no trajeto caseiro.
– Ali, sabe qualquer sitiante local, é ponto de visagens de todo tipo. Parece até reunião do além. Vi muita coisa esquisita andando dentro daquele capão úmido, e outras esquisitas mais adiante, na rampa de saída do túnel estreito, em ambos os lados. O sujeito só não pode é recuar; mesmo as visagens não acuam corajosos…
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Ambrósio foi levando a vida dessa forma mansa, sem entrar em confronto direto com coisas que não entendia. Até que perdeu amigo vizinho, vítima de infarto.
– Senti muito a morte dele. Vinha sempre almoçar comigo, tomar um café… Falávamos de tudo, de todos. Então, de repente, o coração do sujeito pifou. Parece que ainda o vejo sentado no banco da sala…
No velório do amigo, ele citou que sua bebida preferida era licor de jenipapo, aperitivo indispensável nos almoços dominicais, data em que sua esposa Zezé sempre capricha no cardápio.
– Elogiava demais o tempero de Zezé, a ponto de dizer que cozinhava melhor que a sua companheira.
Dias após o enterro, lá pela meia-noite, Ambrósio pensava nos bons momentos vivenciados com o falecido quando ouviu a cancela do sítio ranger ao ser aberta.
– Pensei que fosse algum dos meninos que tivesse ido olhar algo no curral, Ronaldo ou Paulo, e nem liguei. A cancela bateu forte, a ponto de poder escutar a trava metálica.
A esposa Nina dormia sono dos justos, e ele não quis acordá-la. De repente, novo rangido indicou que agora a porta da sala fora aberta, e passos se aproximavam lentamente do seu quarto.
– Nesse instante, pressenti que poderia ser ele. Pensamento instantâneo. Fiquei quieto, de olho na entrada do quarto, que nunca teve porta – dizia Ambrósio.
Mais passos pesados evoluíram pelo corredor, tilintando esporas. Ambrósio já não tinha dúvidas de ser seu amigo o misterioso visitante noturno…
– Não tardou pra ele assomar no umbral do quarto e dizer que veio porque estava com saudades. Pediu que retirasse um pote de ouro sob a barriguda, árvore graúda mais abaixo de nossa casa, perto do rio. Instruiu, inclusive, para ir sozinho, e à meia-noite. Meio complicado isso…
Temeroso de, sozinho, revolver as raízes da barriguda, à cata do anunciado pote, Ambrósio embromou a retirada do prometido pote de ouro. A oportunidade surgiu após visita de tio Domingos ao sítio.
Mascate veterano, tio Domingos ostentava fartos cabelos brancos, alvíssimos. Mesmo sem dentes, conseguia ser simpático ao sorrir banguela, e assim filava sucessivas hospedagens com os parentes roceiros e em outros locais (Bocaiúva, Belo Horizonte, São Paulo).
Esperto, o idoso mascate chegava sempre sem avisar, elegantemente vestindo num inseparável terno branco e chapéu; trajes no autêntico estilo dos mafiosos italianos.
Ambrósio viu na chegada súbita do parente indício seguro de resgatar o pote de ouro anunciado pelo amigo falecido. Conversou e Domingos topou, ávido em ganhar também algumas moedas douradas, como recompensa.
PARTE II
Cuidado com quem bate à porta à meia-noite…
Ambrósio combinou com seu compadre Domingos para irem resgatar o pote de ouro à meia-noite, exigência feita pela alma penada do amigo. O falecido disse não ter paz enquanto o pote não deixasse o jazigo das raízes da barriguda.
– Então, Domingos, nós vamos lá hoje à noite. Vamos levar picareta, enxada e pá. Aquelas raízes são duras. Também é preciso ir com o carrinho de mão, pois o pote deve ser bem pesado…
Tia Nina assistiu silenciosa os preparativos dos dois, recomendando para terem cuidado. Uma frase dela não saiu da cabeça de tio Domingos, homem confessadamente medroso:
– Não é bom mexer com coisas do além; de repente, as almas podem se rebelar…
O fato é que o dia transcorreu mais lentamente, em face da expectativa de ter o pote em mãos. Se a assombração não mentiu, aquilo poderia transformar a vida de todo mundo para bem melhor. Pote de ouro é tentação viva…
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Devia ser perto da meia-noite quando os dois deixaram a humilde casa, carregando a tralha resgata-pote. Dali mesmo, do sítio, em face da noite enluarada, dava pra ver parte da barriguda, cuja galhada parecia ter sede de avançar rumo ao céu.
O carrinho de mão foi rangendo impaciência até lá, e assim desceram pelo mandiocal dispostos a voltar com o pote de ouro.
Tio Domingos comentou estar frio, mas Ambrósio entendeu ser fruto do espírito medroso do compadre. E, zombeteiro, disse ao amigo:
– Não vá se borrar todo, hein, Domingos? Com essas roupas brancas de festa, ficaria horrível…
Aliás, também nunca entendi o porquê de tio Domingos andar sempre de branco, calças rigidamente engomadas. Um homem solitário elegante, concluí.
A barriguda não se deu ao trabalho de ser simpática ao ser importunada no seu sono plácido madrugador. As ferramentas fizeram barulho metálico sinistro já nas primeiras investidas ferozes contra suas raízes. Segundo o falecido vizinho, o pote estava bem ali…
Sempre precavido, tio Domingos deixou o serviço mais pesado a cargo do compadre Ambrósio, limitando-se a averiguar se tudo estava calmo nas imediações. Um vigilante improvisado pela preguiça e medo…
– Pelo visto, você veio apenas para ficar aí, de braços cruzados, né, Ambrósio? Nunca vi alguém tão preguiçoso em minha vida! – reclames do sitiante enquanto alternava picaretas nas raízes.
Domingos preveniu que a árvore poderia sucumbir se as raízes fossem muito afetadas, ao que o compadre explicou ser impossível.
– Estou abrindo buraco apenas de um lado; as laterais e o outro lado estão firmes. Essa árvore é resistente, não cai fácil. Viu a grossura das raízes?
Mais picaretas e duas raízes grossas foram podadas, facilitando a escavação.
Animado, Ambrósio golpeou mais firme o lugar, e exclamou triunfante ao ver algo brilhando mais ao fundo.
– O vizinho [assombração] disse que eu avistaria o ouro brilhando. Lá está ele, estou vendo moedas cintilarem feito estrelas. Só pode ser isso – comemorou.
Cobiçando o tesouro, Domingos ousou deixar a vigília medrosa [à parte da barriguda] e se aproximar para ver se aquela informação procedia. Também viu brilhos cintilantes sendo irradiados do seio das raízes…
– Amigo Ambrósio: nós vamos ficar ricos! – gritou eufórico.
Ambrósio concordou, novamente se preparando para desferir mais picaretas e abrir confortável buraco para resgatar o tesouro. Não é todo dia que alguém é presenteado com pote de ouro…
Eis que uma ventania súbita sacudiu os galhos encorpados da barriguda, estendendo-se às demais árvores próximas, a ponto de arrancar algumas. Esse açoite ventoso assustou os escavadores de propriedade do além.
– Agora a coisa complicou, Domingos! – gritou Ambrósio ao sentir que alguma força estranha travava a enxada, a ponto de sacudir seu braço.
Para complicar, os dois viram porcos correndo ao encontro da barriguda, e, sem esforço, subiram pela árvore, seguidos por tatus peba. Era a primeira vez que assistiam tal cena…
Também marimbondos torpedearam os escavadores com ferroadas implacáveis, seguindo-se gargalhadas tenebrosas de todos os lados.
Um gemido angustiante brotou das raízes cortadas, e isso foi o bastante para os dois saírem correndo, largando tudo pra trás.
Preocupada, tia Nina viu quando os dois se espremeram na passagem da cerca de arame, correndo desvairados para o interior da casa.
Ambrósio narrou o sucedido, e ela comentou séria:
– Não devia ter levado Domingos: quebrou as regras anunciadas pelo seu amigo falecido.
AINDA por várias noites, a assombração voltou a visitar Ambrósio, deixando claro que, para ter o pote de ouro em mãos, teria que ir sozinho. Ele recusou a oferta, informando já estar rezando pelo amigo.
Segundo narrativa do meu primo Nem Pimenta, ainda morador do lugar, mesmo após ser derrubada, durante o dia, a árvore barriguda continuou a emitir estranha luz noturna.
– Acho que o pote de ouro se encontra lá, até hoje. Porém, só vai conseguir retirá-lo quem for autorizado pela alma. Meu pai faleceu, e a sina é de que esse tesouro permaneça para sempre naquele lugar. A luz é encantada; simboliza vida no lugar da barriguda…
EM TEMPO: também vi, na fase adolescente, essa luz brilhando feito estrela, no lugar em que essa fantasmagórica barriguda existiu.
Olhava-a sempre fascinado, da janela da cozinha de tia Nina. Dali se descortinava interessante horizonte de mata fechada aos olhos visitantes…
Por João Carlos de Queiroz
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