Andanças jornalísticas por montes não tão claros…
A FUNÇÃO de repórter não é aquela maravilha que todos pensam: há altos e baixos no decorrer da labuta diária. Mas - é realidade - momentos compensadores também se aliam a esse "bate-pernas-teclas" todo santo dia...
MONTES CLAROS-MG – Ao longe, lá pelas bandas da antiga Malhada, bairro Santos Reis, pode-se ver ainda hoje a magnitude imperiosa do morro Dois Irmãos. Formam irmandade similar às saudosas torres gêmeas do World Trade Center (WTC), na ilha de Manhattan, em Nova York; monumentos arquitetônicos implodidos por terroristas, no fatídico 11 de setembro, em 2001.
QUANDO jovem, fiz questão de adentrar em trilhas que se aproximassem do enigmático morro Dois Irmãos, na esperança de descobrir algo que tenha perdido o interesse geral. O morro Dois Irmãos representam a própria essência do surgimento da cidade; símbolo de resistência aos tempos…
Vali-me então de rústicas bicicletas para vencer íngremes rampas. E não foram poucas as vezes em que derrapei e quase caí diante de curiosos moradores. Vi muitas janelinhas de casebres expondo furtivos olhares zombeteiros. Os espia-rápido-de-quem-passa…
Nos anos 70, já pilotando motocicletas, logrei também atingir o cume do popular Morro do Frade, na mesma região, dali apreciando a aridez da minha cidade natal. Terra sempre banhada por Sol causticante. Isso, quando não chove torrencialmente, como aconteceu há pouco, lembrando o próprio dilúvio enfrentado por Noé.
Lamentei, na época, o abandono da simpática igrejinha do Morro do Frade por vários fatores: primeiro, por entender existir ali grande potencial turístico; segundo, pela miséria arrojada instalada no seu miolo. Viver ali era um desafio diário…
Havia choupanas e mais choupanas ao redor da igrejinha, à base de lona e sustentadas em estacas de madeira; estrutura de fixação duvidosa no solo cascalhado.
Fácil então imaginar o sufoco dos sofríveis comunitários durante a transição de períodos críticos, impactados por torrencial chuvoso e frio intermitente. Sem falar nas rajadas de vento, fenômeno comum no Morro do Frade…
A REPORTAGEM…
Durante nova visita ao maior atrativo do Santos Reis, mais figuras paupérrimas assomaram desconfiadas, emergindo de pontos isolados. No geral, apresentavam sofrível fisionomia esquelética…
A fome é difícil de ser disfarçada em expressões angustiadas e questionadoras de amanhãs imprecisos…
Com bloco de papel, máquina fotográfica e gravador em mãos, senti profundo desalento. O Morro do Frade centralizava reinado miserento do que considerava metrópole norte-mineira. Difícil encontrar o mínimo de animosidade existencial num palco de vida tão deplorável…
Isso aconteceu nos anos 80, época em que integrei a redação do JORNAL DO NORTE. Fui incumbido de elaborar uma “bela matéria” sobre o espírito natalino. O jornal queria registrar a emoção das pessoas em comemorar o Nascimento de Cristo nos lugares mais humildes.
Optei por entrevistar no Morro do Frade uma das famílias paupérrimas do lugar. Pude fotografar mais expressões perdidas de alguns próximos à citada igrejinha…
Por um triz, ao apresentar meu texto no jornal, não perdi o emprego, pois o competente editor-geral, J. Mathias, disse que fugira deliberadamente ao tema solicitado.
Olhando-me de modo severo, o professor Mathias (também lecionava Letras nas escolas públicas) quis saber se entendera bem a pauta da qual fora incumbido de realizar. Clima pesado de conversa, pressenti…
Preocupado em me manter na ativa, ouvi impassível seu sermão de editor-chefe. Mathias destacou que a fome e a vida miserável da maioria dos brasileiros não tinha nada a ver com o espírito natalino {de alegria} que o jornal se propunha a divulgar.
Ele falava e falava, e eu ali, escutando quietinho, sem ousar retrucar.
– Ninguém chora no Natal, rapaz, entenda isso: é só comemoração! – quase gritou, impaciente.
Em vão, criando coragem, visto que o amigo J. Mathias me encarava ansioso, certamente à espera de respostas, expliquei que a realidade do Natal era exatamente aquela.
– O disfarce de fartura e propaganda comercial não se acoplam ao desespero de quem nada tem pra comer. Há crianças pedindo leite, comida. Vá ao Morro do Frade e e ande pela periferia e verá isso! – respondi na bucha.
J. Mathias, um dos editores mais carismáticos com os quais convivi, limitou-se a continuar me olhando. Queria ouvir mais…
Ainda argumentei que a fome existe, sim, e não apenas em datas natalinas, mas durante o ano inteiro. Só não entendia o porquê de tantas campanhas apenas no Natal. Deveriam acontecer sempre…
Mathias rebateu saber disso perfeitamente. E acrescentou:
– Mas o jornal precisa denotar alegria à população, não tristeza! Acho que entendeu nossa posição…
ETICAMENTE, ele não solicitou novo texto, deixando-o de lado na mesa. Bateu então incômodo sentimento de desesperança e impotência; tarefa perdida, emprego sob risco…
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Naquele instante, nem imaginei qual seria sua próxima reação: J. Mathias apresentava semblante decepcionado, com nítido desprezo ao meu trabalho.
Como se reavaliando a situação, ele pegou novamente as laudas que eu datilografara e as sacudiu energicamente. Talvez quisesse aproveitar o mínimo do mínimo…
Senti calafrios ao me direcionar novo olhar questionador, aparentando cansaço. Gesto que prenunciava demissão…
Para minha sorte, o diretor do JORNAL, DO NORTE, Américo Martins Filho, um dos proprietários e pauteiro contumaz de grande parte dos meus textos, adentrou na redação e flagrou esse clima pesado.
J. Mathias, sempre educado, explicou ao patrão o impasse que tinha diante de si. Américo pediu para ler o texto…
Semblante compenetrado, Ameriquinho ficou meneando a cabeça em sinal positivo, após ler atentamente cada página. Só não sabia se estava aprovando. Muita expectativa…
Leitura conclusa, ele devolveu as laudas a J. Mathias e fez sinal positivo com o polegar, instruindo-o para publicar. E eu ali, espantado, sem entender bulufas.
Américo ainda me parabenizou pelo que considerou excelente reportagem. Suspirei aliviado, agradecido ao apoio do amigo.
O editor J. Mathias, evidentemente, não concordava com aquilo, mas patrão é patrão. E, em sinal de branda obediência, pediu ao linotipista Anselmo para descer e compor a página. “Quero na abertura do Caderno 2”, instruiu.
PUBLICADA, minha polêmica matéria natalina elogios rasgados ao jornal, o que também me espantou. No fundo, eu acreditava que os leitores protestariam por contradizer o famoso espírito natalino, sentimento apregoado maciçamente pelos demais meios de comunicação…
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Enquanto trabalhei no Jornal do Norte, sempre atendia os pedidos de Américo Martins Filho para entrevistar fulano ou ciclano, ou abordar temas que ele considerava essenciais, chamativos à atenção do público-leitor.
Geralmente, as pautas de Américo Martins eram passadas após pensar demoradamente, mãos postas, olhos rebuscando o nada ao redor, para depois dizer, de forma triunfante:
– Entreviste primeiro Ubaldino Assis. Depois, Simeão Ribeiro Pires, Coronel Georgino e… (nova pausa).
– Vou pensar em mais alguns nomes depois desses, e aí informo você…
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O Jornal do Norte assumiu gradual liderança de imprensa revolucionária do Norte de Minas Gerais, impondo formato moderno, audacioso. Linha imposta inicialmente pelo saudoso jornalista Robson Costa, experiente veterano do famoso “Estadão” (SP).
Na sequência, outros editores de renome também assumiram a redação do matutino, a exemplo do próprio J. Mathias, Leonardo Álvares da Silva Campos, Felipe Gabrich, etc…
Cada um deles deixou impressa a sua marca profissional idealista, competente.
Por ali também passaram outros grandes nomes inseridos no contexto jornalístico e cultural de MG.
Em síntese, o Jornal do Norte existiu para ser eterno, apesar de suas portas terem sido cerradas há anos…
Por João Carlos de Queiroz
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