Por mais que pareça estranho, esse é o procedimento oficial para destinação dos órgãos humanos, quando as pessoas sofrem lesões irreversíveis, via acidentes, ou mesmo por agravamento do quadro de diabetes/trombose. Ultima-se então amputação emergencial, na tentativa de salvar vidas.
Se for acidente, geralmente ocorre decapitação total ou parcial de braços e pernas, com trituração desses órgãos. Os paramédicos recolhem tudo, encaminhando-os ao setor funerário competente do município, que, por sua vez, informa aos familiares quais providências devem ser tomadas.
Deve ser salientado, aqui, a evolução extraordinária da Medicina: alguns órgãos, decapitados, dependendo das condições e tempo de ocorrência do sinistro, podem ser reimplantados cirurgicamente; apenas os lesionados {irremediavelmente} têm natural destinação fúnebre.
Por precaução, cientes de que aquela perna ou braço pode voltar à pessoa amputada, socorristas sempre carregam bolsas com gelo. Já deu certo inúmeras vezes. Isso, lógico, se a cidade mais próxima do socorro dispor de estrutura clínica para reimplantar eficientemente o órgão em questão.
Meu irmão mais velho, José Antônio, perdeu a ponta do dedo indicador em 76, ao regular o motor do seu VW fusca. Num vacilo previsível, a polia capturou a extremidade do dedo e o decapitou num giro rápido, vi tudo.
Corri o pedaço do dedo do mano envolto em algodão, corri até o hospital Santa Terezinha de Montes Claros-MG, onde ele foi atendido. Tentativa inútil: o membro necrosara rapidamente. Se estivesse acondicionado no gelo, talvez pudesse ser reimplantado.
Anos depois, o mano perdeu outra ponta de dedo, da mesma forma. A partir daí, desistiu de ser um mecânico curioso…
O IMPORTANTE é que nenhum órgão humano é desprezado, após ser clinicamente considerado inservível. O órgão retirado passa por processo similar ao de um funeral comum. Isso inclui autorização expressa da família e aquisição de espaço em cemitério. Enfim, é roteiro jurídico completo, imprescindível à finalização do sepultamento.
Casos de velório também a acontecem, se for esse o gosto dos familiares e do amputado, naturalmente… Não é incomum a própria família (ou paciente) renegar tal reencontro, pois significa retroceder à angústia da perda recente.
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Com espaço oficializado nos cemitérios, os familiares (de quem perdeu algum membro do corpo) dispõem de lugar garantido para acomodação de mais parentes, ou até mesmo do próprio dono da parte física amputada, ali sepultada.
Basta contatar a funerária e a empresa fornecerá as informações necessárias para o novo enterro. Pelo fichário da funerária, o amputado ou familiares tem sempre disponíveis os dados desejados.
Há casos em que familiares também visitam os órgãos enterrados no dia da cirurgia, ou do acidente, Dia de Finados. Não é raro depositarem flores para que as partes descansem em paz, aguardando o reencontro com o restante do corpo.
O estranho é que, algumas vezes, os próprios desguarnecidos de braços e pernas também comparecem para dar um alô aos saudosos membros. No entanto, há quem jamais queira ter qualquer informação ou contato com seus antigos órgãos. Ignorá-los é uma tática usual para evitar sofrer mais…
Em conversa com amputados, fui informado que, por vezes, a perna inexistente emite dor ou forte coceira. Ou entra em processo de dormência, como se ainda existisse.
Outros, disseram ter visto sua perna parada ao lado da cama, aparentemente aguardando ser reconhecida como parte do corpo em repouso. Nunca imaginei existir fantasmas do tipo…
Um cirurgião disse que uma de suas pacientes foi assombrada durante semanas pelo membro amputado.
– Conta que seu braço aparece pra ela todas as noites; e já acordou com sua mão esquerda (amputada) fazendo cafuné…
Segundo ouvi de agente funerário, ele já presenciou velório de pernas, braços, e até mesmo de coração. E, ainda na sua interpretação, foi algo igualmente triste, como se na urna estivesse uma pessoa inteira, não apenas algum membro.
Um dos casos que mais comoveu o agente foi de uma mãe que não cansava de chorar no velório do coração do filho, que ainda continuava hospitalizado, após o transplante.
– Para piorar o clima pesado no velório, apareceu também a mãe do doador do coração. Tratava-se de guri de uns 10 anos, que sofrera acidente fatal, dias antes.
No entendimento do agente funerário, coisas do tipo acontecem, e é preciso entender, tentar ser o mais profissional possível, em ocorrências constrangedoras.
– Nós, agentes, por força da profissão, compartilhamos da dor dos familiares que perdem entes queridos, e de pessoas que veem alguém do seio familiar desprovido de membro importante, braços e pernas. É um velório incomum, mas acontece. Normalmente, o membro amputado já segue direto da funerária para o cemitério.
Ele exemplificou suas palavras ao dizer que, nesse dia, ao assistir duas mães tentando se consolar, finalmente entendeu que os desígnios destinos têm estratégias distintas, contrapondo-se à normalidade que todos desejamos das coisas.
– Esse foi um velório mesmo especial: vi duas mães contemplando uma pequena urna, cercada por velas, que comportava o coração paralisado de uma criança que sobrevivera com coração alheio. Foi-se, enfim, um coração decrépito, de uma pessoa viva, mas permaneceu o coração saudável, de um morto; órgão que restabeleceu o milagre da vida.
Por João Carlos de Queiroz, jornalista
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