Por João Carlos de Queiroz, jornalista – Viajar de trem é algo fascinante para adultos e crianças. Tanto que muitos marmanjos ainda brincam de “trenzinho”, mundo afora. Nos meus bons tempos de infância peralta, também viajei de trem para filar hospedagem carinhosa na casa dos parentes paternos e maternos de Minas Gerais, geralmente acompanhado dos pais e meu irmão mais velho.
Tornou-se mais comum, com os anos, ir a Pires e Albuquerque, mais precisamente no sítio dos tios Nina e Ambrósio. O desembarque na modestíssima estação de Pires acontecia ao cair da noite, e dali até o sítio era uma marcha de quase seis quilômetros. Incluía atravessar o rio, parte rasa, cuidando pra não escorregar nas lodosas pedras que serviam de passarela, e também subir morro íngreme, de cascalho traiçoeiro, após a travessia sinistra no capãozinho, sempre escuro e lamacento.
Foram passeios maravilhosos pela essência rústica, pois a casa do sítio não tinha luz elétrica e sequer piso cimentado, apenas terra batida. Viam-se algumas saliências grotescas no barro descolado das paredes, popular improviso construtor, além da exposição de pontas de bambus na parte externa. Muitas casas da região tinham idêntica “engenharia”…
Devo salientar que, naquela época, Pires e Albuquerque, atual Alto Belo, era distrito esquecido de Bocaiúva, sendo alçado depois à condição de município. Mas, a despeito da mudança radical em seu perfil interiorano nas últimas décadas, ainda hoje mantém formato inquebrantável de lugar retirado, repleto de costumes e superstições. Os moradores são meio avessos a prosa fácil com desconhecidos, querem primeiro saber de quem se trata…
O acesso ao povoado de Pires podia ser feito por meio de estradinhas secundárias, espalhadas entre os municípios de Bocaiúva e Montes Claros, e também por via férrea, malha de larga utilização da lendária Rede Ferroviária Federal Sociedade Anônima, da qual falo mais adiante.
As composições da R.F.F.S.A. transportaram milhões de pessoas pra lá e pra cá, a maioria delas procedente de Monte Azul e municípios nordestinos; eram retirantes fugindo da seca atroz da região, em busca de oportunidades em São Paulo e outros centros maiores.
Na então movimentada “Estação Ferroviária Engenheiro Pires e Albuquerque”, demolida há tempos, os passageiros e parentes aguardavam ansiosamente a chegada do popular ‘trem azul’, que passava por lá à noitinha, quando procedente de Montes Claros, e de madrugada, no regresso de Belo Horizonte, capital mineira.
Constituída de uma espécie de galpão lateral, esse terminal ferroviário de Pires lembrava as estações do Velho Oeste dos EUA, pela praticidade simplória de acesso ao trem e desembarque de passageiros na lateral dos trilhos. Reforçava isso a quantidade de peões em trânsito no local, esporas tilintando e relógios do tipo patacão à mostra. Ao andar, as reluzentes esporas de suas botas nada lustrosas cadenciavam um tilintar contínuo, nervoso. E talvez para mostrar o quanto eram “machos”, lançavam cusparadas gosmentas de fumo nos trilhos do trem, espreitando se a locomotiva já podia ser avistada ou ouvida…
Já as mulheres, alvoroçadas pela viagem próxima, conversavam feito maritacas, observando tudo ao redor. Não raro, emitiam gargalhadas divertidas, presumivelmente de zombaria a um dos presentes na área. Sorriam misteriosas quando algum peão lhes dirigia galanteios. Todas queriam casar, óbvio…
No meio de todo esse burburinho humano, podíamos ouvir o relinchar impaciente de cavalos amarrados ali pertinho, à espera dos donos, transporte trotado da turma vaqueira até seus sítios de origem, mata adentro.
Pela janela do trem, que chiava feito panela de café ao acionar os freios na chegada a Pires, eu ficava deslumbrado ao ver aquele corre-corre curioso da criançada e mesmo de adultos pela plataforma, alguns lado a lado com os vagões em movimento de frenagem tímida, tentando disfarçar a parada escandalosa…
As fisionomias postadas ao longo da plataforma indicavam que a expectativa geral era de participar daquela aventura de deslize pela estrada de aço. Muitos apressadinhos já subiam antes mesmo de a composição interromper de vez a marcha, emitindo característico suspiro de cansaço.
Geralmente, pra não pagar passagem de 1ª. Classe ou de 2ª. Classe, muito caras, eu e meu irmão adquiríamos passagens de 3ª. Classe, cadeiras de madeira, idênticas às de igreja. Só que nunca nos acomodávamos nelas, espertamente permanecendo no vagão restaurante toda a viagem. Na suada economia, uma garrafa de guaraná era bebericada nesse período, até desembarcamos em Pires. Os garçons percebiam nossa manobra, lógico…
Na fase mais criança, aos oito anos, certa vez burlei a vigilância do mano mais velho quando retornávamos a Montes Claros. “Descobri”, na 1ª. Classe, duas poltronas dobráveis vazias, acomodando-me ali. Não tardou para que uma moça se sentasse a meu lado, sorrindo de forma cordial. Até me ofereceu biscoitos, que mastiguei devagarinho…
Ela me perguntou se eu havia comprado bilhete na 1ª. Classe, ao que respondi afirmativo. Esperta, logo desconfiou da mutreta, e me instruiu para dizer que eu estava no leito de sua mãe (beliche) quando o chefe do trem viesse conferir a passagem. “Confirme que sou sua irmã mais velha, e que só veio aqui pra trazer biscoitos”- sussurrou cúmplice.
Minutos depois, eis que o sisudo chefe do trem irrompeu impávido pelo vagão de poltronas-leito. À medida que conferia os bilhetes, ele picotava as extremidades com uma maquininha manual, tipo um alicate. Senti calafrios ao vê-lo se aproximar. Meu irmão alertara que chefe de trem é ruim, pode até expulsar os passageiros. E eu estava ali de penetra, pois era da 3ª. Classe…
A minha nova amiga sorriu serena quando o chefe se postou do nosso lado, apoiando-se discretamente na poltrona vizinha, pois o trem (bitola estreita) balançava muito. O olhar de águia que o conferente deitou sobre mim externou indagação óbvia acerca daquela poltrona que ocupava…
– Ele é meu irmão. Está com minha mãe no vagão leito, só veio trazer biscoitos. Se o senhor quiser uns, aqui estão – e a moça ofereceu o pacote, que ele recusou delicadamente.
Por norma da R.F.F.SA., a conferência de passagens no vagão leito só podia ser feita do lado de fora. Ou seja: o chefe batia levemente na porta, e aí o passageiro abria, informando se estava sozinho ou acompanhado. A seguir, no corredor, ele marcava o(s) bilhete(s). Mas o rigoroso chefe acabara de passar pelo vagão leito, anterior ao de poltronas-leito. Portanto, em tese, já “conferira” minha passagem…
Independente disso, o velho chefe de trem insistiu em manter expressão de não estar muito convencido, detalhe que percebi no seu insistente olhar questionador, carrancudo. Ajeitou os óculos de grau duas vezes antes de sair dali, para meu alívio, não sem direcionar rápidos olhares a nós dois…
– Pronto! Agora você pode ficar comigo até o resto da viagem! – comemorou a simpática moça. E assim cheguei a Montes Claros, deliciando-me em viajar de maneira tão confortável. Meu irmão mais velho, xereta, até que tentou me retirar dessa comodidade filada duas vezes, porém a moça o convenceu. “O pobrezinho do menino tá caindo de sono”, comentou com firmeza. “Daqui a pouco volto pra te buscar”, avisou. Senti certa inveja no tom de suas palavras…
Nem recordo mais da fisionomia daquela moça, somente de alguns detalhes captados no transcorrer da viagem, bem mais agradável pelo conforto da macia poltrona. Percebi que seus olhos castanhos brilhavam, como se tivessem luz própria. Nas olhadelas que lhe direcionei, ela retribuiu gentil. Ofereceu, inclusive, um cobertor grosso para me cobrir, disponível aos passageiros daquela classe.
Mesmo espinhento, o pesado cobertor conseguiu dissipar o incômodo friozinho matutino. Certamente que todos enfrentaram uma noite gelada no decorrer do percurso ferroviário, alta madrugada. Era mês de junho, muito frio em Minas Gerais…
Já próximo a Montes Claros, o trem pareceu mais animado em engolir os trechos que faltavam para aportar no bairro São Judas Tadeu, o primeiro a presenciar seu desfile berrante, aviso de que ninguém devia ficar perto da linha. “Estamos chegando, menino”, disse minha amiga.
O irritante mano cumpriu a promessa: surgiu novamente para exigir que saísse dali e fosse com ele para o vagão restaurante. “Ah, cara chato esse”, pensei ao deixar aquela poltrona e a companhia tão gostosa da moça. “Vamos, pegue sua mochilinha, não vá esquecer nada, suponho”, resmungou o mano. “Ué, trouxe só duas mudas de roupas, nada mais…” Melhor obedecê-lo; gostava de me surrar…
Novamente no vagão restaurante, ficamos uns minutos à janela para aproveitar o restinho da viagem. Não sabíamos quando outra aconteceria. Interessante a animação de tantas pessoas acenando para os passageiros desconhecidos do trem. Isso prosseguiu até chegarmos à estação ferroviária, registrando maior concentração no grande corredor de acesso ao terminal ferroviário da minha cidade.
O maquinista emitiu mais apitos estridentes, e somente assim o solavanco matraqueado da composição diminuiu aos nossos ouvidos, agora acrescido de poeira leve, que levitava ao longo da via férrea. Mais pessoas acenaram, alguns com lenços brancos e de outras cores. Imaginei que algum deles poderia ter parentes ou amigos a bordo do trem, explicação plausível para justificar tantos cumprimentos de dentro de barracos decrépitos ao longo dos trilhos ou de cima do imenso barranco que margeava os mesmos…
Muitos desses “acenadores” estavam em cima da ponte de ferro que liga os bairros São Judas ao Bonfim, e eles também evidenciaram concreta felicidade quando a locomotiva e seus vagões deslizaram mansamente debaixo da gigantesca estrutura, saracoteando moderação pela proximidade do fim da viagem…
Anos após, eu concluí que aquilo significava diversão gratuita, diária. É admirável como pessoas simples conseguem extrair alegria de coisas que passam ao largo da atenção dos grã-finos…
A CHEGADA A MONTES CLAROS…
O trem azul finalmente aportou na Estação Ferroviária de Montes Claros. A viagem prosseguiria depois até Monte Azul. É de lá que vinha aquele povão sofrido, faminto. Deduzi isso na adolescência, ao sentir fétido odor de suor no vagão da 3ª. Classe e ver com que apetite surpreendente eles devoravam farinha com açúcar. Refeição comum de retirantes desprovidos de tudo, porém repletos de esperança e fé em Deus…
Antes de desembarcar, eu quis me despedir daquela moça legal, que simplesmente sumiu entre o vai e vem de pessoas em direção às escadinhas dos vagões. Meu pai nos aguardava na plataforma, e após rápido abraço, pois não era chegado a mimos nos filhos, indagou como andava sua irmã Nina e o cunhado Ambrósio. “Todos estão bem por lá, pai”.
Já na praça, em frente à estação, embarcamos no táxi de um amigo do meu velho, um reluzente sedã preto, marca Chevrolet, que minha mãe sempre fretava diante de alguma necessidade de transporte.
Enfim, as viagens que fiz de trem entre Montes Claros e Belo Horizonte, com muitos embarques e desembarques em Pires e Albuquerque e Bocaiúva, ainda hoje martelam saudosistas no registro da memória que um dia foi criança…