Por Afonso Celso de Magalhães Ferreira – Certa vez, em uma dessas nossas aventuras rumo às terras do Nem, a noitinha nos abraçou, logo na saída de Pires, e nem de perto imaginaríamos os atropelos daquela jornada que estava por vir, com o prazo estipulado de mais ou menos uma hora de caminhada. Da estação, seguindo os trilhos, voltamos por uns quinhentos metros, e à esquerda nos adentramos no caminho que nos levaria ao destino.
Um pequeno riacho com pedras dispostas em seu leito nos facilitou a travessia, junto com os precisos passos e equilíbrio. Estávamos em quatro e com muito fôlego para percorrer as trilhas que iam surgindo pelo caminho e, vez ou outra, um gole de pinga e um cigarro nos cantos da boca, mais as cantorias para afinar a goela. Mais adiante, bem antes de chegar ao capãozinho e seus medos, ficamos à mercê dos palitos para seguir que rumo tomar, diante de uma encruzilhada. A noite ajudava a nossa desorientação, mas acabamos por decidir que à direita seria o indicado, e mesmo que errássemos pela escolha, mais adiante ficaríamos sabendo, e qual nossa decepção quando as águas do rio lamberam nossas botas. Mais uma vez voltamos aos palitinhos, e este nos mandou seguir pelo rio, à esquerda, literalmente.
Nos jogamos nele, com as mochilas ao alto da cabeça, e as águas pela cintura. Com as dificuldades devidas, andamos por mais de meia hora, e nesse caminho, um buraco no fundo do rio engoliu a perna do Paulinho, levando-o ao desespero e à perda da mochila, que com o peso afundou nas águas. Não tivemos dificuldades para encontrá-la, mas por esse impasse, decidimos sair do rio e procurar um outro caminho. Em volta, o colonhão alto deixava às cegas a nossa visão e caminhada, dificultando nosso progresso, mas nada disso atrapalhava nossa alegria e a vontade de chegar à curva do rio, nas terras do nosso amigo, onde montaríamos as barracas. Estava escuro, caramba, e o cansaço nos pedia uma pausa, isso sem contar a fome que chegava.
Mais adiante, com alguns tocos encontrados e apanhados pelo caminho, decidimos fazer uma fogueira para assar uma carne de sol, comprada em Montes Claros. Nos sentamos ali mesmo, no chão, em volta da fogueira. O João Carlos não quis comer da carne por achar que ela estava contaminada pelas ovas da mosca verde. Preferiu a fome.
Seguindo, mais adiante avistamos uma casa de fazenda, e lá estaria a resposta que precisávamos. Junto à cancela, e com medo de cachorro bravo, umas palmadas e uma voz lá de dentro: “Quem taí?” A porta de madeira se escancarou e uma luz de candeeiro nos mostrou uma senhora acompanhada pelo marido. Apressados em relatar o nosso desejo, e medo de chumbo de espingarda, falamos o necessário, e o casal nos atendeu com a gentileza comum aos homens da roça. A senhora, com sua mansidão nas falas, e com um sorriso nos indicou quão perto estávamos e que caminho seguir. Agradecemos e retornamos à estradinha, ávidos para o reencontro com Nem e família.
O velho e conhecido caminho nos levou até à porteira de entrada da fazenda e, com um grito, João fez despertar toda a casa. Nem e sua esposa Zezé apareceram na janela aberta, e ela, percebendo a figura de João, escancarou a porta de entrada e nos levou à cozinha onde faziam uma refeição. E como sempre fazíamos, quando de nossas idas ao sítio, levávamos uma lembrancinha ao casal e seus filhos menores. Ficamos ali, no calor do fogão à lenha, por um bom e prazeroso tempo, onde a prosa de Nem aguçava nossa atenção, e o café com biscoitos recheava nosso paladar.
O rio, bem mais ao fundo da sede da fazenda, onde seu braço fazia uma curva, era o local onde sempre nos acomodávamos, com suas areias limpas e claras. Sob o teto da barraca, e uma coberta a menos, nos apertamos naquele pequeno espaço, de barriga cheia, muita prosa, cachaça e cigarro.
Acordamos com gritos e bum nas águas frias do manso rio, com Edmar se preparando para o dia que chegava.
*Afonso Celso de Magalhães Ferreira é economista do Banco de Brasília-DF. Mineiro de Montes Claros, desde adolescente escreve crônicas sobre o cotidiano local e pessoal. Também é músico, exímio dedilhador de violão.