MONTES CLAROS-MG, ANOS 80…
No gélido mês de junho, por conta das lufadas cortantes da madrugada, adiantei meu retorno ao lar pouco antes da meia-noite. Horário em que já não se via ninguém pelas ruas, tudo quieto demais. No inverno, Montes Claros se hibernava em silêncio geral.
Dessa vez, sentindo frio úmido invadir meu casaco de couro, presente do amigo Juscelino Moreira, mantive a velocidade da moto Yamaha TT 125 cc em torno de 60 quilômetros ao adentrar na reta final da Avenida Mestra Fininha. Trecho em que o motor dois tempos queria ser Fórmula 1…
Nem estiquei após passar pela ponte, optando pela paciência cautelosa de aguardar, em ritmo moderado, a chegada ao trevo de acesso ao Morada do Parque; e assim aconteceu…
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Passei pelos fundos do Parque Municipal Milton Prates e virei a primeira à esquerda, antiga Avenida A. Meu sobrado estava logo adiante, na segunda esquina. Havia alguém em cima da calçada, pude perceber enquanto me aproximava…
O sujeito era um cadeirante, e não tinha pernas e nem um dos braços. O único braço disponível evidenciava atrofia, concluí ao parar a moto perto dele e perguntar o que fazia ali, àquela hora.
– Gosto de ficar “rodando” pela cidade – respondeu o homem.
Não consegui ver suas feições nitidamente por usar barba espessa.
– Vai chover, companheiro! Olhe o céu escuro, todo nublado! Tem muito vento também! Acho melhor você ir pra casa – aconselhei.
Foi um conselho idiota, pois o referido deficiente nem tinha condições de ter se deslocado até o Morada do Parque sozinho. Se seu único braço registrava atrofia, alguém o levara…
– Eu conheço você! Chama-se João Carlos, e já foi lá em casa com seu irmão. Foi há muito tempo…
Ouvi tais palavras sem entender mais nada, mas o cadeirante ainda explicou sua procedência familiar, endereço e tudo o mais…
Por várias vezes, ele se contorceu na cadeira ao tentar falar alguma coisa, voltando depois ao normal. Quis saber se podia ajudá-lo, porém negou. “Tranquilo, tranquilo”.
PERCEBI que a tempestade podia desabar mesmo a qualquer instante, em virtude do açoite violento do vento nas árvores gigantes do Parque Municipal.
Insisti novamente para auxiliá-lo, empurrando a cadeira. No íntimo, já temia que desaparecesse com cadeira e tudo no meio da avenida…
– Deixe de ser preocupar comigo, estou bem. Conforme falei, adoro rodar por aí o tempo todo… – nova explicação do sujeito.
Ele pediu para que o ajeitasse melhor na calçada, o que fiz sem problema. Muito pesada a cadeira. Alguém deve tê-lo ajudado, sim!
Em seguida, o cadeirante solicitou para que o introduzisse portão adentro, desejando hospedagem. Pedido esquisito..
Respondi que minha mãe poderia ter um choque ao ver sua delicada situação física. Pedi desculpas por falar assim e não atender seu pedido. Ele ficou um instante em silêncio, antes de responder:
– Sem desculpas, eu entendo… Pode ir dormir, João! Vou ficar por aqui…
Foi um momento em que entrei em luta feroz com minha consciência: abandonar um cadeirante à própria sorte é desumano!
– Pode entrar, vá dormir, meu amigo! Não se preocupe comigo! Vou ficar bem…
SENTINDO-ME o pior dos seres humanos, abri o portão e avancei pelo quintal. Ao ir fechá-lo {não era automático}, o cadeirante simplesmente fez aceno simpático de despedida, dando por encerrado aquele colóquio noturno.
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Minha mãe e meu irmão caçula (+que Deus os tenha) assistiam televisão na sala. Informei sobre o cadeirante na calçada, e ambos duvidaram. De repente, seus gritos chegaram à sala:
– Queiroz! Queiroz! Queiroz!
– Está me chamando, mãe!
Nenhum dos dois escutou nada, e o cadeirante continuou a me chamar pelo sobrenome. Anteriormente, só disse JOÃO CARLOS. Então sabia meu sobrenome!
Meu mano questionou se não havia fumado maconha, bebido demais ou experimentado alguma outra droga.
– Lógico que não! Sabe que não curto entorpecentes! Pergunta idiota, sô!
SEGUINDO o conselho de minha mãe, subi para o quarto, disposto a conciliar no sono. Mal deitei, o cadeirante voltou a berrar seguidamente: “Queiroz! Queiroz!”
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No dia seguinte, no jornal, nenhum sinal do cadeirante na calçada. Desci para trabalhar e comentei o caso com meus colegas de redação. Um deles foi enfático:
– Esse cara aí morreu há mais de oito anos! Eu fui no velório dele com meu pai. Sofreu acidente automobilístico e perdeu as pernas e um dos braços. Também teve câncer doloroso, e sempre contorcia as feições para segurar a dor… Que história!
Detalhei ter empurrado a cadeira na calçada, sentindo seu peso, contato metálico, etc…
Espírita, o citado colega explicou ser possível isso, sim, mediante raras materializações do plasma.
– Considere-se um privilegiado: não é todo mundo que bate papo com pessoas mortas! O espírito dele visitou você! Encomende uma missa para iluminar sua alma!
NÃO contente, ao sair do jornal, ainda procurei os familiares que o cadeirante citou, ouvindo dos mesmos a confirmação do acidente, doença, óbito. As descrições correspondiam perfeitamente (barba, braço atrofiado, pernas amputadas e convulsões seguidas).
Meu mano mais velho terminou por elucidar as dúvidas restantes. Contou que realmente estivemos na casa do dito cadeirante para visitá-lo tempos atrás. “Você era ainda quase uma criança, João, nem deve se lembrar disso”, comentou.
Por João Carlos de Queiroz
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