Só não podíamos chamá-lo de “Vanderleia”…

Montes Claros, anos 70 – No bairro Edgar Pereira, que muitos confundem até hoje com Vila Ipê {mais além}, nosso grupamento bagunceiro adolescente incluía provocações a quem estivesse quieto. Estar na dele, curtindo a vida, significava convite irresistível de confusão. Os caçadores de briga mal aguentavam um tapa…

Essa turminha dos sem-que-fazer vivia apenas pra bagunçar a vida alheia.Nosso maior prazer residia em tumultuar a rotina do bairro, despertando atenção maciça para o que julgávamos ser importante. Nas cabeças ocas adolescentes, todos deviam nos respeitar…

Assim, provocar o pacífico “Baiano” se incluía na nossa rotina sacana.  Negro corpulento, “Baiano” vivia sempre calado. De há muito percebera ser alvo de chacotas; principalmente depois que descobrimos detestar ser chamado de “Vanderleia”.

– Vanderleia! Vanderleia! Vanderleia! – gritávamos lá da laje de casa, ao vê-lo passar pela Rua Cravina.

Furioso, “Baiano” não arredava pé dali com o intuito de descobrir os autores da provocação. Abaixados na laje, ele jamais nos descobriria. Houve dia em que ficou pertinho do portão, ciente de que os chamados partiram daquele endereço…

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AINDA que convicto de sermos os autores desse tormento quase diário, o quieto “Baiano” jamais nos interpelou na rua para tirar satisfações, limitando-se a nos olhar, de soslaio, observação recriminadora. Ou, creio eu, recado explícito de: “Sei que são vocês, seus miseráveis!”

Só passamos a ficar preocupados quando vimos “Baiano” inserido numa roda de capoeiristas, na Praça da Matriz: o homem rodopiava os pés pelo ar que nem pás de helicóptero, legítimos torpedos mortais. Dois dos jogadores de capoeira foram ao chão rapidinho ao “brincar” com ele. Que perigo corríamos, desde então!

Foi no Natal que a coisa se complicou de vez pro nosso lado, antes mesmo da meia-noite, horário da ceia. Afinal, ninguém quer perder os quitutes comemorativos do Nascimento de Cristo.

Marchando rumo ao centro, antes de cruzarmos a ponte do Rio Vieira, que é circundada pela avenida Deputado Esteve Rodrigues, antiga Avenida Sanitária, avistamos “Baiano” vindo em direção contrária. Talvez voltasse do serviço, pensei. Os demais malandros da turma devem ter tirado outras conclusões…

O pacífico capoeirista se manteve indiferente ao nos ver, e tampouco mudou a rota na avenida. Mas, mesmo na quase escuridão do lugar, pude ver seus olhos sibilarem rancor contido. Ele prosseguiu seus passos em ritmo seguro, avenida afora…

DIFÍCIL resistir chamá-lo de “Vanderleia” ao perceber que já estava distante, sendo improvável que viesse nos perseguir. Em coro, gritamos forte: “Vanderleiaaaaaaaaaaa!!!”

“Baiano” estatizou os passos ágeis, virando-se felinamente. Acho que já esperava algo semelhante. As sandálias de pneu foram acopladas ágeis em suas mãos, como se fossem luvas. E aí ele empreendeu corrida firme, decidido a nos apanhar…

Floriano, um dos gritadores, foi o primeiro a arrancar em alucinada correria para fugir do perseguidor. Eu, Afonso e Humberto “Sujismundo” o seguimos de perto. Lá vinha “Baiano”, claramente disposto a nos crucificar pela goela!

Esse corre-corre entremeou entrada pelas vielas laterais à Marechal Deodoro e por becos da Altino de Freitas. Até nos escondemos num deles, atrás de caixa d’água depositada no chão. Porém, ao sairmos, acreditando estar livres de “Baiano”, o danado – que montara campana nas proximidades – reapareceu disposto a nos esfolar. Nova fuga, de quase fôlego exaurido…

ASSIM entramos pelo portão da casa de Joaquinzinho Lopes, subindo na laje da casa. Novamente, a laje seria nosso forte seguro…

O espia-medroso pela Altino de Freitas não demorou a detectar “Baiano” andando inquietamente pela calçada em ambos os lados, olhando atrás de carros, dentro de alpendres e em tudo que pudesse servir de guarida aos fujões.

“Está espumando de raiva”, comentou Floriano.

Ainda em cima da laje da casa do tio Joaquinzinho, uma das pessoas mais doces que conheci, escutamos o foguetório natalino da meia-noite, sentindo o aroma inebriante de pratos natalinos invadir nossas narinas sem cerimônia.

Captamos igualmente muitas risadas e vozes alegres pela fraterna comemoração de Natal, logo abaixo. Eles nem tinham ideia de que estávamos ali, aquartelados pelo medo. Sair daquele refúgio providencial implicava em dar de caras com “Baiano”…

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ALTA madrugada, decidimos finalmente deixar a laje. Afinal, “Baiano” não esperaria tanto, com certeza. E, de fato, não o encontramos mais, retornando rápidos ao Edgar Pereira; trajeto efetuado de forma cabreira.

Não foi descartada a possibilidade de “Baiano” nos esperar de tocaia em alguma esquina. Afonso e Floriano ainda passariam por desértica área escura, de acesso à Vila Brasília, bairro vizinho ao Edgar Pereira. Tratava-se de um trecho repleto de matagal, propício para sediar esconderijos.

Felizmente, os amigos-irmãos chegaram bem em casa. Quanto a mim, corri que nem louco até à Rua Cravina, esbaforidamente abrindo o portão de madeira. Todos já dormiam…

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Por alguns dias, não encontramos “Baiano”, que surgiu inesperadamente numa tarde, no bar de Manoel, bem ao lado da Transportadora Expresso Mineiro, administrada por meu pai. Tomávamos guaraná com pão doce, e por pouco não engasgamos ao vê-lo entrar todo imponente, bem-preparado físico capoeirista impondo terror.

No entanto, cordial, enquanto também tomava refrigerante, “Baiano” nos cumprimentou, e disse que não guardava mágoas pelo susto de dias atrás.

Prometemos nunca mais chamá-lo de “Vanderleia”, ao que “Baiano” assentiu feliz. “Senão, meninos, corro atrás de vocês outra vez”, retrucou bem-humorado.

Manoel do Bar o elogiou:

“Baiano” é um rapaz trabalhador, meninos! Não o provoquem mais, por favor! Uma hora ele perde a paciência…”

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COM “Baiano” descartado do cenário de provocações, passamos a infernizar outros. Um dos enquadrados no foco dessa agenda era “Lei”, rapaz conhecido por ser brigão contumaz nas redondezas da Matriz, área que considerávamos nosso território. Mas “Lei” também enquadrara a Matriz no âmbito do seu domínio territorial, e uma tarde nos disse, em tom desafiador:

– Aqui não tem lugar pra vocês! Precisam “limpar” a área de vez. Se os encontrar novamente reunidos na praça, vão penar feio…

Para nossa sorte, “Baiano” transitava pela pracinha e parou para escutar o audacioso “Lei” nos intimando à debandada geral. Sentindo que “Baiano” interveria a nosso favor, posto ser do mesmo bairro, eu desafiei “Lei” ao dizer que ninguém ali estava disposto a acatar suas ordens. Olhando-me surpreso, ele respondeu:

– Então, nós vamos resolver isso agora, do meu jeito! – e já se posicionou numa frenética dança capoeirista.

Olhamos desesperados para “Baiano”, que, a essa altura, já deixara de lado suas sandálias de pneu para nos defender.

– Pode resolver comigo, “Lei”! – falou ao efetuar um rabo de arraia fantástico próximo à cabeça do valentão. “Lei” recuou na hora:

– Meu negócio é com eles, “Baiano”, não com você!

“Baiano” nem seu deu ao trabalho de responder, e aplicou novo golpe preciso de tomba-marmanjo em “Lei”.

A metros, ouvimos as imensas mãos de “Baiano” estatelarem tapas na cara do provocador, e, a partir desse momento, ele não conseguiu mais se manter em pé, batendo em retirada medrosa.

– Se provocar os meninos, “Lei”, já sabe: vai levar mais! Na próxima, acredite, serei menos piedoso, seu “lutador de meia-tigela”! – avisou o mestre capoeirista.

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Desde àquela tarde, “Lei” perdeu de vez sua soberania valente nas adjacências da Matriz. Até evitava transitar pela mesma alameda da Matriz ao nos ver reunidos no banco para as intermináveis conversas madrugadoras…

Por João Carlos de Queiroz, jornalista