Por João Carlos de Queiroz – Não é todo mundo que é agraciado com um presente “do além”. No caso do meu tio Ambrósio, o presente veio de compadre falecido dias atrás. E o sinistro fez questão de anunciar a entrega do mimo antes mesmo da missa de Sétimo Dia. “É uma visita que ninguém quer receber”, dizia o tio.
O fato é que o espectro do defunto chegou mansamente na cancela da fazenda após a meia-noite, e ao empurrá-la mansamente, para não acordar os moradores, desencadeou alvoroço repentino na cachorrada (caninos “enxergam” coisas do tipo).
Na realidade, o espírito nem precisava abri-la, apenas “transpassá-la”. Almas atravessam paredes e tudo o mais. Pois bem: pátio vencido, o compadre do além matraqueou suas botinas barulhentas no corredor principal da casa, indo direto ao quarto de Ambrósio. O tilintar das esporas ecoava nas paredes…
Ambrósio tinha sono pesado, mas naquela noite pressentiu que algo aconteceria e estava “assuntando” a quietude do silêncio incômodo. Foi assim que escutou o ranger da cancela e soube que seu compadre estava a caminho para visitá-lo. Apavorado, enroscou-se no cobertor espinhento e orou firme, no sentido de escapulir do alcance do fantasma. Não conseguiu, pôde comprovar segundos após, ao sentir que uma mão o apalpava insistentemente. Apesar de quieto, rijo na cama, seus olhos estavam estatelados de agonia. Sabia que o compadre era o autor desses cutucões…
– Ambrósio, acorde! Tenho boa notícia pra você! – anunciou uma voz gutural, lembrando alguém que fala ao telefone com pano de disfarce da voz.
O tio sitiante tentou permanecer na teimosa posição estática, mas os cutucões do falecido prosseguiram. Não tinha jeito: melhor sair do abrigo do surrado cobertor e enfrentar a “sua” noite de terror. E ensaiou olhar precavido por um canto de olhos, para comprovar que era o próprio amigo que ele velara dias atrás o autor daquela importunação.
– Ah, acordou, hein? Não quer ficar rico, sô? – indagação tétrica de voz conhecida.
Quedado de pavor no leito, Ambrósio se limitou a escutar as instruções do compadre fantasma, aparentemente à vontade na nova condição de morador das sombras. O visitante das trevas explicou como ele deveria proceder para resgatar um pote de ouro enterrado na barriguda, área da fazendinha do filho Nem, bem ali ao lado.
– Mas vai ter que ir sozinho, Ambrósio, não leve ninguém! – advertiu. Ambrósio concordou ao balançar a cabeça, atônito. Não é todo dia que almas penadas anunciam tesouro gratuito…
Na noite seguinte, lá pelas 02h, horário estipulado, ele convidou o amigo Domingos para acompanhá-lo na tarefa de resgatar o pote de ouro. Fugiu, assim, à determinação do compadre falecido, de não levar ninguém. “Não vou lá sozinho de jeito nenhum”, confessou ao mascate Domingos, figura sempre em visita ocasional ao sítio da família em Pires e Albuquerque.
“Sacolejo incômodo…”
A barriguda tinha história intrigante na região: diziam ser árvore encantada. Muitos viram “coisas” andando por lá durante a Quaresma. Ambrósio contava ser pura invencionice medrosa do povo, apesar de ele alardear encontros surpresas com lobisomens e aparições diversas no transcurso entre o povoado e seu sítio.
Municiados de ferramentas de escavação, os dois aportaram ao pé da imensa árvore (de mais de três metros de diâmetro) dispostos a sair dali com o pote de ouro. Pelas informações do compadre fantasma, o pote estava enterrado sob as raízes, bem rente ao tronco. Restava escavar para localizá-lo, tarefa que demandou mais de uma hora.
Nesse meio-tempo, começaram a surgir figuras estranhas na área da barriguda, a exemplo de porcos ágeis, que subiram na árvore velozmente, dali zurrando de forma estridente, feito onça, jegue; uma mistura não sabe de quê. Nem uma onça encurralada por caçadores faria tamanho barulho.
Independente desse show fantasmagórico, o trabalho de escavação prosseguiu firme. Domingos, mais corajoso, incitava Ambrósio a não desistir da caça ao tesouro. Percebia que ele estava apavorado, ansioso para “dar linha”, sair dali correndo…
– Querem porque querem que desistamos. Não vamos fazer isso!
De repente, a enxada bateu em algo duro, metálico. “O pote de ouro!” – pensaram simultaneamente, duplicando o esforço de escavação. Aí, sim, a coisa se complicou de vez para os dois aventureiros noturnos: não apenas porcos subiam nas árvores, mas também figuras horrorosas, das quais afirmam ter aspectos distintos. E todas gritavam em coro, saudando ventania súbita na área.
Para piorar, a gordíssima barriguda, nome que descreve seu formato, passou a evidenciar sacolejo inédito à sua envergadura, a ponto de alguns galhos açoitarem o chão. Quem já viu cabos de alta tensão rompidos tem uma noção do espetáculo protagonizado pela árvore. Aquilo foi mais do que suficiente para a dupla escavadora abrir fuga…
Ambrósio disse nem saber como conseguiu não ser colhido por uma das vassouradas terríveis da árvore. Saiu dali em pulos olímpicos, gritando para Domingos acompanhá-lo. Nem precisava emitir esse alerta: mais adiante, ele viu um vulto igualmente saltitante entre as moitas próximas, para logo ganhar distância no meio da lavoura baixa de milho: era Domingos, o “corajoso” companheiro, cujas pernas pareciam sincronizadas para voar rasante. A lua cheia favoreceu o reconhecimento…
Segundo Ambrósio, o compadre dos pés juntos voltou a importuná-lo mais duas vezes, tentando convencê-lo a voltar à árvore barriguda sozinho. “Pode escolher outro; lá, eu não volto mais!” – respondeu na segunda visita. Após essa noite, nunca mais escutou o ranger da cancela do sítio e nem as passadas de esporas salientes do compadre, que juntou os calcanhares após sofrer queda de cavalo…
Em tempo: durante muitos anos, mesmo após ser demolida por conta dessa fama de mal-assombrada, a árvore barriguda passou a emitir intensa luz branca ao anoitecer. Postado à janela da cozinha do sítio dos parentes, eu mesmo a vi várias vezes, ao cair da tarde. Mas ela simplesmente sumia quando alguém se aproximava. Os primos até hoje dizem que são reflexos do pote encantado, que continua por lá, à espera de um corajoso sortudo…