Montes Claros-MG – Tem tios que deixam saudades e, também, amargas lembranças. Tio Beto (Felisberto) foi um deles. Extremamente simpático, morou conosco durante meses, na velha casa da Rua Cravina, bairro Edgar Pereira, lá pelos anos 60.
Por alto, antes de sua chegada, soubemos que o falante tio não andava bem de saúde, e assim precisava de tranquilidade, repouso absoluto. Já há algum tempo vinha sofrendo sérios problemas cardíacos.
Porém, ao inverso de repousar, fez foi aprontar – e muito! – nas redondezas: difícil saber quantas mulheres casadas não caíram na sua lábia manhosa e pinta de galã de cinema…
Apavorada, minha mãe o alertou pra tomar vergonha na cara e deixar de paquerar mulheres comprometidas. Os conselhos da matriarca entravam por um ouvido e saíam pelo outro. Difícil a noite em que o tio não se aventurava a catar alguma mulher alheia…
O tio paquerador só freou seus impulsos de garanhão quando um marido traído, motorista de carreta, baixou irado lá na porta de casa, querendo ter uma conversinha de “pé de orelha” com ele.
Do alpendre, acabrunhados, testemunhamos aquele sujeito portando um baita porrete, e bufando de raiva ao falar, voz rouca, exaltada. Chegou a forçar o portão por duas vezes. Desconfiava que o tio pudesse estar escondido…
Por sorte, meu pai chegou na hora, e, como já conhecia o chifrudo, quase um amigo da vizinhança, conseguiu apaziguar sua fúria {não sabemos como}. Conversa tensa, demorada…
O corno ouviu os conselhos do meu velho de cabeça baixa por minutos esticados, volta e meia esticando o pescoço casa adentro, inegavelmente ainda à procura do tio, o “furador de olhos”.
– Beto viajou pra Belo Horizonte hoje cedo, companheiro. Nem sei se regressa mais; está muito doente – mentiu meu pai inicialmente ao perceber o clima tenso.
Evidenciando expressão relutante, o homem demorou a sair dali…
Tio Beto sabia ter se enrascado de vez, e assim preferiu nem falar nada ao ser recriminado duramente pelo meu velho.
– Olha aí o resultado de sua irresponsabilidade, Felisberto! Reze pra aquele homem não o encontrar nas ruas, reze! Ele tem fama de ser bom de facão…
O medo de ser esquartejado segurou o Dom Juan em casa por algumas noites. Procedia, então, os receios da esposa do corno:
– Meu marido sangra qualquer um que se aproximar de mim. Nem Deus há de deixar que desconfie de …você. Não quero perdê-lo…
COM SUAS investidas noturnas podadas, a mente fértil do tio logo descobriu uma maneira de se divertir no confinamento caseiro, enquanto o desconfiômetro do motorista chifrudo estivesse em alta. Nos assustar, por exemplo, estava na sua programação.
– Samariaaaa! Samariaaaa! – ouvimos uma noite. O quarto escuro não dava pra distinguir nada, lá fora. Até que a porta se abriu…
– Samariaaaaa! Samariaaaa!
Vimos, nitidamente, uma figura encapuzada postada no vão da porta, pitando um cigarro, rosto todo iluminado. Melhor nem gritar, ficar quietinho pra aquilo sumir rápido…
– Samariaaaa! Samariaaaa! – dizia repetidamente.
Na primeira vez que o tio encarnou essa personagem tétrico, nem atentamos que pudesse ser ele, presumindo estar dormindo placidamente.
Esperto, ele ajeitava um volume na cama de campanha similar a corpo em repouso, levando-nos a acreditar que Samaria era uma visita fantasmagórica REAL!
Foram várias aparições de Samaria alta madrugada, momento em que éramos sacudidos para acordar e vivenciar autêntica situação de pavor.
Sempre salientando que a escuridão do quarto se tornou fator impeditivo para distinguir o autor dos cutucões – o próprio tio. Aí, ele acendia a lanterna dentro do roupão e parte do seu rosto resplandecia luminosidade tenebrosa…
– Samariaaaa! Samariaaaa!
Nunca foi possível saber como Samaria saía do quarto, pois o duplo bate-queixo medroso, debaixo dos cobertores, impedia a mínima varredura de olhos infantis pelo ambiente escuro, a fim de acompanhar as evoluções da incomum visitante. Presumivelmente, ela procedia do além…
Uma outra curiosidade: após Samaria sumir, o correto seria que tio Beto retornasse à sua cama de campanha. Afinal, ainda apavorados, demorávamos a pegar no sono, e qualquer movimentação no quarto seria certamente presenciada. Nunca flagramos isso; restou esse ingrediente misterioso…
###
Mais meses transcorreram, e tio Beto partiu de volta a Itabirito, cidade próxima a Belo Horizonte, onde residia antes de vir para Montes Claros. Foi a última vez que o vimos…
Deixou-nos, de herança, a tétrica Samaria, fantasma reavivada em nossa memória infantil durante os meses seguintes, quando sofreu infarto fulminante e foi recebido por Deus. “Nem sofreu”, comentaram os parentes.
Enfim, o diagnóstico médico se confirmara: o frágil coração de tio Beto não conseguiu mais bombear sangue, encerrando os batimentos da vida e suas perigosas aventuras de Casanova, ou Dom Juan.
AINDA hoje, já adultos e em idade “ladeira abaixo” (após os 60), eu e o mano Zé sempre comentamos sobre os sustos noturnos que Samaria nos pregou por noites e noites.
O mano caçula, Marcelo, ficou cismado só de ouvir tais relatos, e vez ou outra corria pela casa alta madrugada, dizendo estar vendo Samaria…
Tio Beto só revelou ser SAMARIA ao partir de volta a Itabirito, e disse que foi uma brincadeira divertida. Para ele, lógico. E o pior é que preconizou novas noites insones durante sua ausência:
“Se Samaria aparecer de novo não sou eu, tomem cuidado!
Saiu rindo de tudo, levando sua mochila ao ombro, certamente se divertindo por nos praguejar mais medo.
Deu pra ver também umas moças cochichando tristes na rua enquanto ele partia, todas casadas e de caso aventureiro com o tio. Esperto, ele as ignorou por completo, ciente da existência do homem do facão nas redondezas…
###
*O presente relato é uma homenagem ao meu querido tio paterno Felisberto, uma das pessoas mais maravilhosas com as quais convivi. Além de extremamente inteligente, tio Beto angariava amigos facilmente, o que incluía o mencionado encantamento feminino pela sua pessoa. Principalmente por parte de mulheres casadas, sua fraqueza em vida…
Por João Carlos de Queiroz, jornalista
..