Que retorne então o Trem Azul…

Desativada há décadas, o charmoso comboio da RFFSA - Rede Ferroviária Federal Sociedade Anônima cortava as áridas regiões norte-mineira regularmente com destino a Montes Claros. De Monte Azul a Montes Claros era conhecido como Trem Baiano, tornando-se Trem Azul a partir daí, quando mais vagões de cor azul e branco eram engatados na composição com destino a Belo Horizonte, capital do Estado (Foto Youtube)

Norte de Minas Gerais – Quem teve a oportunidade de andar no Trem Azul – versão mais luxuosa do Trem Baiano -, sentiu-se espontaneamente enlevado em amplos devaneios letárgicos. A viagem, em si, proporcionava curiosos reencontros sugestivos com o próprio “eu”, pois os minutos e horas transmutavam mágico prazer confesso, descortinando horizontes límpidos a consciências eventualmente angustiadas.

Posso definir o saudoso Trem Azul como uma espécie de “analista atencioso”: isso porque, a partir do embarque, cada passageiro assumia papel espectador de deslumbrante peça teatral, quedando-se à imposição encantadora de silenciosos atores humanos, ou mesmo da fauna e flora próximas, ou a quilômetros dos vagões…

Esse mutável grupo artístico ficava espalhado em campos floridos ou abaixo de ruidosas pontes metálicas. Bastava a locomotiva adentrar na ponte para a estrutura descomunal estremecer abruptamente, como se ressentida daquela invasão. Não poucas vezes, vislumbrei braços de lavadeiras sendo agitados freneticamente logo abaixo; talvez conscientes do sucesso desencadeado pelo momentâneo ato de interpretação da sobrevivência…

Após acenos de lá e cá, a ponte ficava para trás em segundos, e os campos floridos voltavam a recompor mais cenários dessa inesquecível espetáculo. O bate-roupas devia prosseguir normalmente, e novos cumprimentos sucederiam à passagem do próximo comboio, supunha.

Coincidentemente, em meio a reflexões semelhantes, o cheiro de café novo volta e meia invadia os vagões do trem; convite explícito para abandonarmos o papel de espectador teatral e ir em busca de aconchego alimentar no vagão-restaurante, à retaguarda da 3ª classe.

Por lá, recordo, portadoras de expressões contemplativas à paisagem, geralmente estavam pessoas sorridentes, todas evidentemente felizes pela degustação explícita {de sabores gastronômicos ou não} ofertados ao longo da charmosa viagem…

Já acomodado numa mesa tremulante, eu memorizava cada detalhe presente naquele ambiente, a começar do fustigar célere de mato nas janelas do trem em trechos abarrancados. Incrível a proximidade dos vagões ao zingar por essas trilhas estreitas, lapidadas por dinamite e tratores na época da construção da ferrovia.

Também o uniforme branco dos garçons, sem uma gota sequer de café ou gordura, impressionava a quem analisasse esse pormenor mais detidamente. Sem dúvidas, uma proeza incomum mantê-lo assim, em função do vai-e-vem dos atendentes pelo balança-mas-não-cai do vagão-restaurante. A locomotiva retumbava buzinaços sucessivos para espantar animais e mesmo pessoas dos trilhos. Estava tudo bem…

Além do café da tarde e lanches, o vagão-restaurante oferecia cardápio simples de jantar, refeição apetitosa. Geralmente, serviam omeletes, batatas fritas, arroz solto e feijão de caldo grosso; ingredientes acompanhados de farofa, salada, etc. {*Por causa dos horários de partida em Montes Claros (17:30h e chegada em Belo Horizonte (10:30h), o almoço não se incluía nos serviços.} 

O café da tarde, resumindo, era mais uma aliado prazeroso dessa viagem no Trem Azul: após nutrir a pança de café e torradas amanteigadas, os passageiros retornavam aos respectivos carros para aguardar pacientemente o jantar, sempre servido em noite fechada.

Face colada à gelidez do vidro da janela, eu permitia que os pensamentos perambulassem pela paisagem mortiça de fim de tarde, recrudescendo alguns sonhos. Não poucas vezes, o sono me colheu de surpresa e deletou tranquilo a etapa do jantar. Mas era Interessante como a fase crepuscular pincelava cenários deslizantes, para entrar em cena uma progressiva escuridão…

No dia seguinte, após nova ida ao vagão-restaurante para um lauto café da manhã, já nas proximidades da capital mineira, outros detalhes chamavam a minha atenção: um deles era a quantidade de pessoas postadas em barrancos íngremes, a fim de “assistir” a passagem do Trem Azul, como se não tivessem mais nada para fazer na vida. Sempre estavam por lá, parecendo “bater ponto” de continência…

Impressionante constatar que a formação irregular da maioria desses frágeis imóveis, edificados à base de madeira ou alvenaria, facultava fácil desmoronamento. Era igualmente evidente a dificuldade de acesso dos humildes moradores aos apertados abrigos domiciliares.

Na verdade, cada um deles, seja adulto, criança ou idoso, desafiava as intempéries da natureza todos os dias. Escorregar barranco abaixo se constituía numa possibilidade real…

Gentis, os maquinistas sempre cumprimentavam esse público simplório com acenos efusivos, sendo retribuídos com balanço efusivo de camisetas e lençóis – cena idêntica à de torcedores de futebol. Cansei de ver isso quando o trem efetuava curvas mais fechadas, quase 180º.

Mais adiante, a locomotiva assumia marcha nitidamente moderada, trocando de trilhos com estardalhaço mastigador, buzina acionada a todo instante. A Região Metropolitana de Belo Horizonte começava, assim, a abrir os braços para receber o Trem Azul na sóbria estação da capital mineira…

João  Carlos de Queiroz, jornalista

 

 

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