Montes Claros-MG, 1991 – AQUELE janeiro, recordo bem, alquebrou o marasmo tradicional de Montes Claros, letargia registrada naturalmente após a eclosão dos festejos natalinos.
Agora, havia no ar palpável expectativa de novidades a serem alardeadas em escala dominó, fruto harmonioso do rompante tecladista. Para tanto, os textos datilografados pelos repórteres competiam protagonismo de impressão chumbada na barulheira infernal do garboso “Diário de Montes Claros”, situada no miolo da Rua Dr. Santos.
Ao cair daquela tarde, o prédio de três andares, construído pelo jornalista Décio Queiroz, mais uma vez estremeceu sinistro a cada tranco das imensas “Maria Fumaça” estacionárias. Preocupante a produção tóxica de chumbo fumacento descarregado na gráfica pela produção harmoniosa dos linotipos. Coitado dos funcionários!
Incrível o mastigar apetitoso exibido pelos linotipos, sofreguidão geradora de frases impressas em barrinhas de chumbo. Uma a uma, elas se perfilavam numa caixinha acoplada ao lado do teclado amarelo e preto, dali saindo para uma boa escovadela e conferência na revisão. Depois, acontecia a próxima fase, a montagem final das páginas. Muito trabalho…
Os pesadíssimos linotipos, atualmente restritos a salas de museus em todo o mundo,assemelham-se a monstrengos das películas japonesas; robôs em sucessiva metamorfose veicular, seja para praticar o bem ou o mal…
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Interessante constatar a alegria expressa nas feições dos trabalhadores locais: nunca vi nenhum deles se queixando de nada, pelo contrário. Aliás, corrigindo: a queixa dos nobres gráficos se restringia à demora na entrega do lanche.
Legal trabalhar em meio a tanto otimismo, concluí assim em disfarçadas observações. A alegria cunhada em cada expressão denotava espírito sadio reinante nessa agitada oficina.
Um detalhe interessante era o “elevador” de notícias, barbante grosso que descarregava os textos diretamente na gráfica. A redação ficava no terceiro andar, e, no ato do término de algum texto, a página descia tremulante para ser acolhida pelos linotipistas. “Mandem a matéria de capa!”, cobravam.
Em questão de minutos, o texto de papel se transformaria em informações chumbadas. Impressionante a rapidez dos linotipistas ao compor tais textos. Para eles, algo normal.
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Nesse dia, ou melhor, quase noite, a figura carismática do editor-chefe Felipe Gabrich desceu à gráfica para verificar se a montagem da página da manchete seguiu suas instruções.
Fã de carteira do talentoso profissional de imprensa, eu o segui silencioso pelas alamedas londrinas da gráfica. Ele não se importou de ser torpedeado por tanta fumaça, e explicou mais detalhes de como deveria sair aquela edição. Ninguém o contestou, respeito total.
Essa surpresa interrupção de Felipe teve lugar durante o pique do burburinho intempestivo de produção do jornal, fervilhante agito contra o tempo: a notícia precisa sair “fresca”. Atrasos implicam em sofrer “barrigadas” (levar furos). É quando um outro jornal se antecipa à notícia não divulgada pelo nosso.
ANTES DE SER um senhor editor jornalístico, Felipe Gabrich detinha posição respeitosa dos funcionários do jornal, seja do setor administrativo, gráfico e redação. Não raro, participava do lanche da gráfica, detonando gargalhadas prazerosas.
Dizem ter ficado bem furioso quando não achou nem uma ponta de manteiga para untar o pão. “Seus gulosos! Não deixaram nadinha pra mim!”
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Naquele início de noite, os linotipistas Anselmo e Tião metralhavam o teclado naturalmente, em bombástica sinfonia de tac, tac…
Anselmo, com seu típico olhar sereno, externou um belo sorriso ao me ver. Ainda cumprimentei Tião, linotipista-chefe, que, entretido em decifrar as correções de um texto, limitou -se a emitir grunhido pretensiosamente gentil.
Quando trabalhava,Tião mal conversava ou perdia tempo com futilidades, dedicando concentração 100% ao serviço. Porém, na hora de breve pausa do lanche, ouvia-se sua voz rouca ecoar alegremente pelo recinto enfumaçado da gráfica.
Anselmo, entre um mastigar educado e outro de pão, a tudo observava sem comentar, sorrindo levemente ao ouvir algo mais picante. Tinha uma boa turma de piadistas nessa gráfica.
Por João Carlos de Queiroz