“Betão Ronca Ferro” já virou filme e novela no Brasil. Mas esse era o nome pelo qual Montes Claros também conhecia o desengonçado cidadão que “dirigia” um caminhãozinho de brinquedo pelas suas ruas e na cascalhada estrada que ligava a pomposa cidade do Norte de Minas a Janaúba, nos anos 70. O ponto de parada dessa viagem regular era Capitão Enéas, nunca se soube o porquê. Hoje, todo esse trecho está asfaltado, e tampouco as novas gerações sabem quem foi “Betão” e qual é sua importância no contexto cultural do município.
“Betão” não necessariamente mendigava, alimentando-se do que recebia de pessoas condoídas com sua situação. E enquanto comia bem devagar, seus olhos perscrutavam as pessoas próximas para tentar entender aquele gesto caridoso. No geral, parecia indiferente a tudo que pudesse suceder ao redor de si.
Tratava-se de um homem negro, portador de estatura alta e relativamente forte. Tinha estrutura corpórea similar à legítima raça africana. Porém, era notório a dificuldade dos seus movimentos de “condutor” de caminhão. Ao andar, praticamente arrastava os pés, como se o simples toque dos mesmos fosse doloroso. Ao ensaiar pretensos sorrisos felizes, ele escancarava horrendos caninos pontiagudos. Percebia-se o visível desdém inconsciente que talvez nutrisse sobre o mundo e tudo que diz respeito à complexa arte de viver.
Sua legítima paixão ciumenta era o caminhãozinho: ai de quem tocasse nele. O doador do brinquedo instalou um volante de carro atrelado a um cabo de vassoura, que, por sua vez, tinha ligação direta com o eixo dianteiro. Dessa forma, “Betão” conseguia efetuar manobras ao girar o volante, utilizado também para empurrar o caminhãozinho. O barulho do motor saía de sua própria boca. Se alguém não saísse da frente “Betão” reclamava duro: “Olha os “zóios” dessa bobagem!”, frase usual.
Enquanto o observei andar por Montes Claros, creio que nunca o vi sorrir sinceramente nenhuma vez. Apenas, certa ocasião, escutei sua estrondosa gargalhada sem motivo aparente. Som de tonalidade estranhíssima; ecoou feito um tufão liberto em meio ao silêncio noturno da Praça da Matriz, seu local predileto de andanças e paradas. Incrível como conseguia gargalhar com aqueles lábios carnudos rachados. Aquilo devia doer muito…
Certamente, a meu ver, as realidades cotidianas não se enquadravam no foco do seu interesse dispersivo, visto que”Betão” conversava o tempo todo com alguém invisível, dizendo coisas ininteligíveis…
Da mesma forma que se mantinha estático em algum lugar, olhando o nada abaixo diante de si durante horas e horas, já arrancava a seguir em passos rápidos com seu caminhãozinho, como se fosse resolver algo urgente ali por perto ou mesmo distante. A loucura proporciona tais devaneios, fazendo com que seres humanos viajem felizes em suas próprias fantasias…
Por vezes, ao invés de sumir da vista geral, “Betão” já se detinha quase que de imediato do outro lado da praça, momento em que estabelecia nova etapa de imobilidade reflexiva. Aí, conhecedor dos seus estranhos costumes, eu nem me dava ao trabalho de sequenciar aquela curiosa observação: ele levaria bom tempo para sair dali…
Na tentativa de ajudá-lo, recriminei na imprensa a ineficiência do Poder Público Municipal por não assisti-lo adequadamente, também oficializando pedidos aos titulares de Pastas de Apoio Social na Prefeitura para mobilizar providências urgentes nesse sentido.
Vários secretários municipais garantiram estar cientes do caso, prometendo resolvê-lo nos próximos dias. “Está agendado, fique tranquilo”, ouvi isso várias vezes; promessas em vã. Os anos se passaram e o sofrido ser humano “Betão Ronca Ferro” continuou na mesma situação…
Seus olhos estrábicos, típico zarolho, também eram motivo de troça da criançada, que adorava provocá-lo para ele praguejar palavras que ninguém entendia o significado. Não poucas vezes, todos viram o pobrezinho com as calças sujas de fezes, o que motivo mais piadas insensíveis. A criança que morava no corpo adulto de “Betão” jamais foi reconhecida por qualquer daquelas pessoas que trucidaram sua existência com chacotas impiedosas.
“Betão Ronca Ferro” deixou de ser andarilho e motorista de um caminhão de brinquedo (que pensava ser um veículo de grande porte) durante uma de suas viagens a Capitão Enéas: seu corpo foi encontrado ao lado dos destroços do caminhãozinho. Atropelamento fatal que permanece até hoje sem solução. Não se tem ideia de quem possa ter ceifado a inocente vida desse simpático alienado mental…
(Por João Carlos de Queiroz)