Ao trabalhar no prédio da Reitoria da Fundação Norte Mineira de Ensino Superior, nos anos 70, fiquei curioso acerca da história centenária desse imóvel. Nunca imaginei que ali se tornaria sede de um famoso órgão de imprensa regional, o Jornal do Norte.
Naquela época, a imprensa escrita local se resumia apenas ao “Jornal de Montes Claros” e “Diário de Montes Claros”. A “Rádio Sociedade” dominava então audiência absoluta no seu setor.
Pois bem: nas conversas com o amigo Ricardinho, funcionário de Américo Martins, garagem ao lado, ele informou que vários esqueletos de escravos foram encontrados durante a construção dos muros ao redor do escritório.
– Alguns estavam ainda acorrentados, presos por argolas nos pulsos e pescoço – disse.
Ricardinho complementou que, por causa disso, todo o entorno da imensa área recebia “visitas” regulares de almas de outro mundo.
– Basta chegar o final de semana que o tumulto de assombrações começa feio lá no casarão. Daqui mesmo, da garagem, é possível escutar gemidos e gritos… De gente viva, bem sei, não é… – garantiu.
Ricardinho ainda informou que o porão do casarão dispunha de sala de tortura escrava, com tronco e tudo. O que comprovei em seguida.
Chocante ver aquele tronco escuro (certamente manchas de sangue) no meio da pequena sala. Fácil imaginar quantos não sofreram horrores e foram mortos ali…
Nos papos aleatórios com Américo, indaguei sobre tais aparições. Pela sua expressão zombeteira e impaciente, concluí que devia ter voltado a pensar que era louco. Nem quis alongar a conversar…
Persistente, conversei também com o vigilante da Reitoria, Bernardo, homem corpulento, jeito indígena, portador de correntes de ouro e terços. Já percebera haver cruzes na porta do seu quarto, desenhadas com giz.
– Mal-assombrado não é: é a casa deles! – já foi dizendo. Os fantasmas tinham aliado.
O vigilante falou sobre os bailes do outro mundo {que aconteciam alta madrugada}, festas que gostava de presenciar, e não omitiu que os escravos torturados e mortos ainda assombrassem o lugar.
– Esses, coitados não têm paz, sofrem muito. Sinto dor só de imaginar a covardia que fizeram com eles. Assim, exigem justiça. Realmente gritam alto, batem as coisas por tudo quanto é canto do casarão. Falta luz pra que descansem…
Américo se divertiu ao ouvir algumas dessas histórias posteriormente, brincando que os fantasmas puxariam meu pé a qualquer momento.
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Já residindo em Cuiabá, nos anos 90 recebi uma ligação de Américo, fato estranhíssimo. Ele me pediu perdão sem pestanejar, e aí fiquei mais confuso, desejando saber o porquê.
– Hoje, eu cuido de mais de 300 cães de rua, estão abrigados na Rocinha. Um dia, faz tempo, chamei você de louco por cuidar de animais. Gostaria que me perdoasse…
Ouvir aquilo de Américo Martins me deixou simplesmente atônito. Primeiro, jamais imaginaria que fosse me pedir desculpas ou perdão por algo…
Enquanto convivemos em Montes Claros, o empresário sempre demonstrou postura altiva, inacessível. Talvez me considerasse inferior em termos humanos, pensei um dia.
Agora, no entanto, lá estava ele me pedindo perdão! Atitude surpreendente!
Logicamente, colhido de surpresa, só pude responder que o perdoava, sim, de coração. E passamos a conversar sobre banalidades diversas, falando sobre o Jornal do Norte, que foi uma das experiências mais gratificantes que vivenciei em Montes Claros, na condição de repórter.
Pelo entusiasmo de Américo, percebi o quanto as pessoas se quedam diante dos próprios projetos, estendendo-os como pontes motivadoras, além dos comuns horizontes existenciais. O Jornal do Norte foi luz profícua em sua existência.
João Carlos de Queiroz
O casarão, residência de coronéis da época da escravatura, tinha até