Pires e Albuquerque: lembranças rurais de pura delícia

Os anos são céleres, e, por vezes, no afã de aproveitar cada minuto, nem percebemos quais são realmente importantes. Hoje, num rebuscar espontâneo da memória criança e pré-adolescente, contabilizo apenas saudades dos costumeiros passeios no rústico sítio da família, em Pires e Albuquerque. Trata-se de povoado pertinho da minha cidade natal, Montes Claros. Infelizmente, até mudaram seu nome…
 
A velha máxima de que “éramos felizes e não sabíamos” se aplica aí, evidentemente. Porque, se pudéssemos voltar a ser crianças, para reprisar tudo aquilo que deixou marcas saudosas, seria ótimo. Infelizmente, não é possível…
 
Meu velho pai, Carlos Petronilho de Queiroz, de origem orgulhosamente roceira, viveu por ali quase toda a sua juventude. Andava com um baita revólver na cintura, para desespero de minha mãe.
 
Volta e meia, ar de mistério, ele nos contava que já matara um lobisomem numa ponte próxima a Pires, quando o bicho partiu feroz pra cima dele. “Voltou a ser o que era antes, um homem comum. Mas, se eu não atirasse, não estaria aqui contando isso pra vocês. O bicho veio decidido a me matar”.
 
Tio Ambrósio, pra não perder ponto, também contava outras bravatas do tipo. “Um baita lobisomem quis me atacar quando eu atravessava o rio de madrugada. Recuou ao ver que segurava meu facão na boca. Lobisomem tem pavor de facão”.
 
Outros “causos” se associavam a esses, a exemplo de luzes no capãozinho, vaca do caixão de defunto (levava um no lombo), potes de ouro, visitas de compadres falecidos, encantador de serpentes, etc. e tal…
 
Só não gostava de ouvir coisas semelhantes perto da hora de dormir, pois aí batia medão medonho, e, insone, torcia para o dia amanhecer, perscrutando o silêncio madrugador pra saber se não seria igualmente atacado pelos moradores das sombras…
 
O primo Nem entrou nesse rol de contadores de lorotas, ou visões geradas pela imaginação. Relatou que, certa madrugada, ao regressar de uma festa de santo no povoado, defrontou-se com um homem misterioso sentado no alto da cancela. O sujeito parecia mudo, só movimentava de leve a cabeça, usando um baita chapelão. O pior: parecia esperá-lo!
 
Precavido, Nem diz ter fingido não ver o caboclo, e abriu normalmente a cancela para passar, ainda que seu cavalo relinchasse de pavor, empinando sucessivamente. “O animal ameaçava disparar”, recorda. “Cavalo “vê” essas coisas”.
 
A custo, puxando o animal firmemente, Nem logrou passar pela cancela. A seguir, sem olhar pra trás, amarrou o cavalo numa árvore próxima. Porém, ao retornar pra fechar a cancela, ele afirma não ter ficado surpreso ao constatar que o tal homem desaparecera feito fumaça. “Aquilo lá não pertencia a esse mundo. Rezei um Creio em Deus Pai e prossegui viagem, agora com o cavalo mais calmo”.
 
Pois bem: fantasmas à parte, foi nesse sítio que encontrei a paz que a maioria das pessoas busca. Tal constatação resgata outro ditame popular: “Dinheiro não compra felicidade”. Tem gente que já diz, irônico: “De fato. Manda buscar”.
 
O certo é que, por anos seguidos, enquanto durou as minhas fases de inocência e o insosso despertar para o mundo vilão, eu perambulei pelo sítio dos parentes paternos bem à vontade, ansioso pela hora do almoço e jantar. A tia Nina caprichava nos pratos simples, no arroz com pequi (frutas disponíveis logo acima do sítio). A sobremesa era variada: manga, doce de abóbora, doce de caju, queixadinha e outros quitutes.
 
Só não podia é exagerar na comilança, porque a “casinha” (sanitário) ficava na parte recuada do quintal, àquela hora assolado por escuridão medonha. Se desse um aperto de madrugada, quando todos estivessem dormindo, o jeito era aguentar até amanhecer…
 
Foram férias prazerosas e aventureiras, também. Eu e o dócil cavalo “Passarinho” (foto – que Deus o tenha…) levamos um engraçado tombo dentro do Rio Verde. A culpada foi a chuva repentina, que deixou tudo bem escorregadio, inclusive o traiçoeiro corredor de acesso ao manancial, travessia obrigatória para quem quisesse ir à propriedade vizinha.
 
Não deu outra: ao puxar “Passarinho” pelas rédeas, forçando-o a descer a rampa escorregadia, o pobre perdeu o equilíbrio das pernas e estatelou seu corpo graúdo no corredor enlameado. Mais à frente, ainda vi quando “Passarinho” desceu rápido, desgovernador, em minha direção. Inutilmente tentei sair do seu caminho, evitar o “atropelamento”. Em segundos, ambos já estávamos nas águas amarelas do rio, que, por sorte, voltara quase ao nível normal, portanto sem risco de afogamento.
 
O duro foi aguentar a gozação dos primos ao chegar ao sítio, totalmente coberto de lama, sorriso amarelo de quem cometeu algum deslize. Tia Nina estava visivelmente preocupada com minha demora, por causa da chuva forte que caiu após eu sair para buscar as rapaduras, e quis saber se não machucara. “Tá tudo bem, tia. Ah, trouxe as rapaduras, só que estão meio molhadinha…” – explosão geral de gargalhadas.
Depois conto outras do velho sítio familiar em Pires, que abriga um cenário interminável de contos de fadas dos meus bons tempos criança… João Carlos de Queiroz