João Carlos de Queiroz – Existe algo mais tenebroso do que um piquenique em pleno cemitério? Num lugar reservado aos mortos, é difícil entabular algum clima de descontração alegre. Mesmo porque “eles” (mortos) não aprovariam tal profanação.. Em tese, gostam de silêncio, clima respeitoso…
Esse foi um dos sonhos mais inquiridores e sem explicação plausível que tive, recentemente. Encontrava-me num cemitério crepuscular. O termo crepuscular significa (conforme as imagens foscas do sonho) que era quase noite. Nada ali tinha nitidez confortável à visão perspicaz de eventuais visitantes. Pois há gente que adora visitar cemitérios, acreditem!
Enfim, eu estava ali para um piquenique. Não tinha ninguém comigo, impunha o sonho. Olhava ao redor e não via nada além de túmulos de lápide grossa, evidenciando dizeres em letras graúdas. “Aqui jaz Manoel” (e outros moradores perpétuos). Os túmulos estavam quase rentes ao solo gramado, terreno parcialmente coberto de granito branco, mais presente ao redor do tétrico formato retangular.
Também não vislumbrei flores para decorar nenhum daqueles marcos de eternidade do que um dia foram seres humanos normais, alegres, tristes, raivosos, e que agora jaziam integrados à terra local…
Granito branco, já sabia desde criança, inspira coisa luxuosa, mesmo em ambientes fúnebres. E aquele cemitério, apesar da austeridade das criptas, devia ser mesmo de gente esnobe, rica. As lápides, todas elas, faziam perfilamento harmonioso nos contornos da noite próxima, entremeada de sombras impositivas…
E eu ali, pronto para um piquenique, vejam só! Convinha saborear os quitutes que trouxera. Tinha sanduíche de pão e queijo na cestinha disposta ao alcance da mão, em cima do mármore de uma cripta, e bebidas, vinho tinto e seco…
Beberiquei um desses vinhos antes de mordiscar o pão de milho, certo de que aquilo era normal. Estar ali sozinho não me incomodava. Só que nunca conhecera sujeito algum adepto de piqueniques em cemitério. Nada de errado comigo, lógico. Estranharia se fosse com outra pessoa…
Perguntei-me, assim, sobre o motivo de escolher justamente um cemitério antigo para recrear meu estômago carente de algo gostoso e, talvez, de uma boa companhia amiga, capaz de apaziguar a sensação de estar perdido e sem noção…
Comecei então a desconfiar de que poderia nem pertencer mais ao mundo dos vivos. E uma natural recusa de aceitar minha nova condição, análise sequencial, fora decisiva para estar subjugado no tempo incomum dos filhos divinos. Ou amaldiçoados. Inexistem garantias de que, ao morrer, as pessoas se tornem santas…
Se vivo eu estivesse, seria melhor. Mas, cá pra nós,sei que tem gente morta que anda entre os vivos sem saber que não integra mais a ala terrestre. Os espíritos sentem fome, frio, cansaço, calor, angústia, alegria, saudades, ouvi isso num centro mediúnico, certa vez. Desconfortável pensar que nunca está sozinho em casa, ou que algum ente do mundo das trevas cobiça seu alimento, ansioso por “tomar uma”.
Decisivamente, não era esse o meu caso. Duas beliscadas duras me chamaram a atenção para a sensibilidade dolorida da pele. Estava vivo! Porém, espíritos vivenciam tudo que relatei acima. Inclusive dores. E eu senti o ardor das beliscadas!
Melhor não esquentar a moringa e degustar aquele momento, indubitavelmente especial. Para começar, queria saber a origem do cemitério, totalmente indefinida. Nem tive certeza se era mesmo no Brasil. Poderia nem existir em lugar nenhum, sei lá. Aquelas lápides…
Subitamente, o Campo Santo se transformou numa merreca de lote fúnebre! O antigo luxo desaparecera; felizmente, minha cesta de piquenique ainda não se movera do lugar original…
Uma das estranhezas desse piquenique residia mais na luminosidade opaca, suficiente para alardear os mínimos detalhes. Lá, notório, não tinha nenhuma luz noturna para garantir esse manto de exposição visual, e a lua, por sua vez, também não se manifestara reluzente, emitindo raios de sua imponência prateada. E eu lá, sem forçar a vista, vendo tudo…
– Olá? Tudo bem por aí? Está frio aqui…
Esse cumprimento me colheu de surpresa. Quase engasguei com o sanduíche caseiro. Partiu de uma mulher de uns 35 anos, que passou de relance ao meu lado. Ela viajava na traseira de um carro funerário com seu bebê.
A mulher ocupava o lado esquerdo da carroceria branca {aberta}. Já o bebezinho, estava acomodado e bem comportado numa cestinha de vinil, na ponta direita. Não consegui precisar se era ele ou ela.
– Oi… – respondi. Mais estranho do que o piquenique era aquela senhora passear entre túmulos a bordo de um carro funerário. E – ainda por cima – levando uma criancinha!
O carro da “última viagem” de quem juntou os cascos manteve uma marcha moderada, quase parando. A mulher me acenou feliz, eletrizante. Era o cúmulo aquilo: feliz (?) por viajar num “táxi” de mortos? Vai entender…
Pude perceber que ela ajeitou rapidamente o bebê dentro da cesta-berço, deixando-o na ponta da carroceria, a seu lado. Poderia cair, perigoso aquilo…
Apesar da pequena distância, escutei um chorinho tímido, indício de que o bebê acordou ao ser transferido dos braços para a cestinha. Nem um cordão simples assegurava que aquele berço improvisado não iria despencar com os solavancos do veículo funerário entre o terreno do cemitério, assolado por pequenas ondulações.
Conforme comentei lá atrás, meus olhos tinham sido ungidos de visão extraordinária, de coruja! E eu curtia aquilo…
O carro funerário prosseguiu então sua viagem intrigante. O vulto da mulher uniu-se aos balanços insossos do rabecão da morte, mãos acenando cumprimentos alegres, quando deveria é segurar seu bebê. O pobrezinho não chorou, e tudo pareceu ser bem previsível… Mesmo o encontro com aquela mulher esquisita…
Outra hipótese me assaltou naqueles instantes, antes de perder total interesse em olhar a marcha vagarosa do velho funeral pela rampa sinuosa do cemitério: a “feliz mulher” podia nem ser a mãe do bebezinho. Isso explicaria sua despreocupação…
Retribuí, educadamente, os infindáveis cumprimentos da desgrenhada, cujos cabelos dançavam ao vento, ameaça de liberdade pela opressão da morte ao redor…
A princípio, imaginei que a cena fosse algum enterro noturno. Muitos optam por funerais ao cair da noite. Depois, cheguei a outras conclusões, ao comprovar que o pequeno espaço da carroceria não era compartilhado por nenhum defunto. Só a mulher e o bebê sem rosto (não o vira) estavam ali. Se eram vivos, isso eu não poderia afirmar categoricamente. Afinal, cadáveres são os passageiros “normais” de carros funerários. Não mães irresponsáveis com criancinhas de colo…
Mais uma dedução relâmpago se instalou no meu cérebro: outro carro funerário poderia vir à retaguarda desse primeiro; certamente, poderia estar servindo somente de transporte da mulher e seu bebê.
Por mais que esticasse o pescoço e olhos, não vi sinal de outro carro funerário. E o porquê de aquela mulher preferir viajar no compartimento reservado à acoplagem de ataúdes, dúvida insolente, não tinha fundamento…
Agora, para meu espanto moderado, eles regressavam em minha direção, Deus! Nem vi o trôpego funeral efetuar manobras para retornar…
Já posicionado a meu lado, pois pareceu voar no regresso ao ponto de piquenique, o motorista do carro funerário me cumprimentou cordialmente, como se fosse velho chegado meu. Deixou explícito que me conhecia!
– Cara! Mas… é você! Olha você!
Se o dito me conhecia, jamais o tinha visto em carne e osso, ou mesmo em espírito. A educação, porém, mandou que retribuísse a gentileza dessa efusiva saudação.
– Tudo bem também com você, cara?
Mais uma coisa me intrigou: não recordava ter visto antes nenhum motorista ao volante daquele carro. Somente a mulher e seu bebê, nada mais. Cabine totalmente vazia. Bem… Tem coisas que fica melhor se a gente não esmiuçar muito… Até mesmo para evitar novas complicações, surpresas…
O fato é que não me lembrava da cara desse motorista de defuntos. E ele lá, todo sorrisos, mão direita estendida! Cumprimentamo-nos e eu senti a gelidez desconfortável do contato, o que gerou calafrios incontroláveis em todo meu corpo. Cumprimento sem calor receptivo, da minha parte. O sorriso do além continuava impresso na feição do carrega-presuntos.
Lembrei-me, rápido, de uma ex-vizinha carrancuda, dona de funerária, também confeiteira e assadeira experiente de espetinhos. Quase vomitei quando ela me disse que o formol usado para preparar cadáveres não saía de suas mãos. “Esse cheiro de formol está “entranhado”, já faz parte de mim. E é enjoativo!” – confessou cansada, antes de me perguntar curiosa:
– Quer um espetinho hoje, filho?
Não preciso dizer que neguei. Misturaram-se na minha mente essa cena de defuntos {que ela arrumava para os velórios} com as rotineira cenas de tempero dos espetinhos que a papa-defunto vendia à porta de sua casa. Eram as mesmas mãos que faziam isso!
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O motorista do carro funerário continuava ali, radiante com nosso possível “reencontro”. Consegui, mais uma vez, sorrir sem-graça e até agradeci pela delicadeza do cumprimento. Ele continuou a apertar minha mão. Não queria soltá-la!
Volteei o olhar para a retaguarda do cemitério. Queria que aquele condutor da Família Adans fosse embora. Tinha nojo de gente morta! E o motorista lidava com mortos o dia inteiro. Era como se o odor fétido de carne em decomposição estivesse presente entre nós…
Finalmente, creio que depois de uns dois longos minutos, ele resolveu liberar minha mão, e saiu feliz pela oportunidade de me “rever”. Repetiu que foi uma casualidade feliz aquele encontro. “Nunca imaginava que estivesse aqui também”, disse ao andar de costas. Nem quis estranhar esse comportamento, andar de costas, credo…
Tampouco ouvi os passos rápidos do cadáverico se distanciando dos meus ouvidos. O cascalho dos seus passos emitiu farfalhar agonizante. Aí, tudo ficou quieto. Não vi nem ouvi mais nada. Nem gente falando, motor do carro funerário ou o choro do bebê, que devia estar dormindo na cestinha que a mãe o depositara. Aliás, ela também sumiu; incrível como as pessoas surgem e somem, magicamente…
Meu piquenique no cemitério perdeu de vez seu tom simpático, e impôs toque de recolher imediato. Questionador o motivo que me levou a estar ali em pleno entardecer, ávido por saborear pães com salsichas ao molho, atum, presunto, na vizinhaça de sepulturas…
As sombras da noite, antes compreensivas, insuficientes para ocultar nítidos detalhes aos meus olhos, de repente mudaram sua postura, enegrecendo tudo a menos de dois metros do local escolhido para sediar o incomum piquenique. Melhor sair dali enquanto podia, pois os reflexos da penumbra assumiram lugar de rei…
Finalmente senti medo e quis ir embora, encontrando novos obstáculos: a área (antes reduzida) do velho cemitério se alastrara de forma inexplicável. O Campo Santo não tinha fim nem saídas. Como deixar aquele lugar? Desespero total… Saí correndo rumo ao penhasco dos fundos, nova novidade na área. Se fosse ser alado, talvez conseguisse deixar aquele cenário de intrincada armadilha sem vida…
Foi o momento oportuno em que acordei e beberiquei, sôfrego, dois copos d’água gelada, ansioso para espantar qualquer resquícios de algo tão assombroso. Prudentemente, deixei a TV ligada o restante da noite…