Paulo Roberto, o menino triste, tocador de pandeiro…

NA VIDA MISERÁVEL QUE LEVAVA, ELE SOUBE ANGARIAR APLAUSOS DIVERSOS...

João Carlos de Queiroz – Paulo Roberto era um menino pobre e doente, também morador da “nossa” rua esburacada, de acesso à Avenida Geraldo Athayde, Montes Claros. Não residia por ali nenhum outro com suas características. Devia ter uns 14 anos, mas aparentava 12, no máximo, crescimento retardado, em função da vida precária que sua avó benzedeira levava. Ambos viviam praticamente da caridade dos habitantes da rua e de outras pessoas anônimas. Da chaminé do carcomido fogão a lenha do casebre do menino Paulo, instalado na divisa da cozinha com o quintal, dificilmente saía alguma fumaça…

O menino Paulo adorava tamborilar um pandeiro que fabricara a partir de lata de marmelada e tampinhas de garrafa, primorosamente afixadas nas laterais. No silêncio noturno daquela rua sempre sombria, que dormitava precocemente à agitação geral da cidade, ouvia-se sempre o matraquear sincronizado do instrumento caseiro que o adolescente tinha como companheiro inseparável. O motivo de estar com a avó, e não com seus pais,  era desconhecido.

Muitos moradores indagavam se a idosa avó de Paulo consentia com esses acordes trepidantes, e como conseguia dormir… O neto tinha ciúmes do seu pandeiro improvisado, era notório. Talvez nem o trocasse por um oficial, pois jamais quis vendê-lo aos que se compadeceram dos seus encantos pela música e, assim, quiseram ajudá-lo a obter um melhor, de forma disfarçada…

Também nunca soube de alguém que tivesse o privilégio de segurar aquele pandeiro por meros segundos. Paulo olhava com desdém as pessoas que lhe pediam tal coisa. O pandeiro era mesmo a preciosidade maior da vida regrada e sem perspectiva desse indigente em formação.

A rústica casa de Paulo Roberto, mesmo ao longe, já evidenciava aspecto paupérrimo e frágil, e ficava a uns 250 metros da nossa. Foi construída à base de barro batido e tabocas. O estranho menino parecia se orgulhar do quintal tomado de lixo, cercado por ‘muro’ de cipó trançado. O telhado era uma interessante mistura de telhas descartadas por alguém e pedaços de amianto, recolhidos para impedir que a água da chuva transformasse o chão batido em poças de lama…

Todos imaginavam o que avó e o neto, tocador de pandeiro, não passavam sob aquele teto em dias de fortes vendavais, ou mesmo no inverno… As frestas das paredes facultavam a qualquer curioso espiar as penumbras desse ambiente, forçosamente chamado de ‘lar’. Paulo Roberto, picado por insetos dos pés à cabeça, parecia mais uma criança atacada por varíola, mas nunca se queixou disso. Até entreabria os lábios semi-rachados, exibindo dentes pontiagudos e amarelos quando recebia algum cumprimento na rua, tentativa de sorriso feliz…

No Natal e Ano Novo, observei, o lugar se alienava por completo das festas animadas que cada residência da empobrecida rua protagonizava. Nem o típico matraquear do pandeiro era ouvido, ainda que de leve… A casa ficava o tempo todo às escuras, sem o tremular insosso de lamparinas, totalmente silenciosa. Não parecia abrigar dois moradores marginalizados pela sociedade. Creio que nunca os convidaram para nenhuma ceia natalina. E, interessante, todos cantavam “Noite Feliz” repetidamente. Nunca foi noite feliz para eles…

A avó do menino Paulo saía pouco à rua, e mais se assemelhava a uma bruxa da vida real. Uma vez, eu a procurei para me benzer. Dizia sofrer de dor no braço, mentirinha de curioso. Um arranhão vagabundo mascarava o propósito real de conhecer algo sobre aquela senhora que conseguia criar um neto cascudo. Ela não questionou se aquilo era manha e nem se o leve arranhão no braço merecia rezas. Ficou sussurrando preces ininteligíveis ao entendimento de uma criança ainda às voltas para compreender um mundo incógnito.

Paulo apareceu na sala e, por uns instantes, observou a cena domiciliar, sem comentários. Fingiu não me reconhecer e saiu rápido rumo ao quintal, sua floresta de lixo. Logo o pandeiro irmão deu sinais de vida…

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Olhar aquele menino quase negro, e com a pele coberta por uma espécie de escamas roxas, dava pena. Paulo Roberto Nunca parava de se coçar, suplício externado em público. Seus olhos foscos se retorciam a cada exercício para minar a coceira brava que o atormentava dia e noite. Costumava fungar áspero nesses momentos, e, por vezes, denso catarro pendia de suas narinas, como se perscrutando a possibilidade de deixar aqueles orifícios e procurar abrigo num ser mais resistente a doenças…

Todas as crianças das redondezas recebiam alertas severos dos pais para não tocar em Paulo Roberto. O argumento era de que ‘poderiam se contaminar’. De quê? – cabia aí uma indagação. Talvez a aparência de peixe cascudo e a coceira fossem por causa de sua inimizade declarada com água. Paulo fedia a suor vencido, a metros de distância. Ele mesmo parecia perceber isso, posto que não insistia para manter qualquer proximidade conosco. Conversava de longe, e nunca fazia menção de nos cumprimentar com apertos de mãos ou abraços. Entendia que a sociedade o excluíra sem chances de se redimir. Redimir de quê?

Tinha pena de vê-lo assim, tão humilhado, por apresentar um corpo repleto de anomalias. Os pés eram disformes, amontoado de dedos de unhas toscas, quebradas, escuras, pontas em fuga… Sua cabeça, oh Deus!, um ninho de caspas gigantescas, agrupadas ali, sem cerimônia. Uma legítima touca de escamas esvoaçantes, a cada vez que ele coçava seus cabelos crespos. Só me admirava em comprovar que possuía dentes intactos, sem cárieas, apesar de amarelados por falta de escovação.

Paulo Roberto estava sempre imbuído de expressão entre triste e saudosa, e sorria largo diante de alguma oferenda, fossem brinquedos estragados, roupas usadas, doces ou uma moeda de baixo valor… Dava valor a tudo, pobrezinho! Criança, eu já entendia isso, sentia seu descomprometimento de cobiça por valores…

Alguns anos transcorreram sem que aquela rotina da rua e da casa de Paulo Roberto fosse alterada. Mas, numa manhã chuvosa, acordei com uma agitação incomum na área. Abri a janela e percebi que algo acontecera por lá. Muita gente na porta, ambulância, polícia…

Minha mãe já conversava na porta com dois vizinhos e não permitiu que eu saísse. “Não vá lá, fique aqui!”, ordenou. Meu semblante criança pedia explicações, choramingava querendo sair, mas não fui levado a sério. Aí, compadecendo-se desse meu olhar, a vizinha de frente à nossa casa explicou que Paulo Roberto havia morrido. “Não era pra falar”, recriminou minha mãe. Ela sabia que eu tinha certa afeição pelo menino pobre da rua…

A movimentação de ambulância e polícia continuou firme em frente ao casebre de Paulo por mais de uma hora. Pensei na avó e na tristeza da benzedeira, agora sem seu neto por perto naquela casa úmida e escura, que, na medida do possível, era alegrada com seu pandeiro. Por quanto tempo mais ela sobreviveria à nova situação?

Ficamos observando, agora calados, cada desenrolar dos acontecimentos lá adiante.  Momentos depois, o corpo do menino Paulo saiu acomodado numa cama de ambulância, alguém disse que era ele. Apenas um embrulho branco, pacote humano. Será que o pandeiro o acompanharia à última morada? Lágrimas rolaram na minha face corada, pele ainda aveludada pela infância…

O carro branco desceu a rua bem devagar, e muitos vizinhos acenaram lenços respeitosos, em sinal de despedida.  Sabiam que o menino Paulo não retornaria à casa da avó sequer para ser velado. Era o fim de uma trajetória existencial, trôpega em todos os sentidos…

Não soube exatamente que fim levou a avó de Paulo Roberto. A benzedeira sumiu de vez, dias após a partida estranha do neto. A casa onde moravam praticamente ficou lacrada. Comentários davam conta de que ela se teria se mudado para a casa de um parente em outra cidade, fato agora tido como certo. Então tinha parentes…

O certo é que os anos se encarregaram de deitar abaixo as paredes de barro batido e taboca, descortinando, aos olhos surpresos da vizinhança, o quintal de lixo existente nos fundos daquele abrigo de pessoas sem perspectiva de futuro, ou vida…

Enquanto moramos ali, por mais um bom punhado de anos, tive a impressão de ouvir, às vezes, os batuques cadenciados do pandeiro do menino Paulo Roberto, som entremeado pelas risadas roucas que ele liberava diante de alguma coisa engraçada, que só sua mente, certamente tomada de desvario, concebia…