Por João Carlos de Queiroz, jornalista – Já faz um tempinho, década de 70, fui convidado a conhecer São Francisco, então modesta cidade do Norte de Minas Gerais, incrustada na região de Montes Claros, minha terra natal. São Francisco faz divisa com Brasília de Minas – outro polo modesto e de fácil acesso a Januária, via atalhos e rodovias principais. Atualmente, tudo se modernizou naquela região, e o asfalto é manto confortável para quantos transitam por lá.
Em tempo: Januária sempre foi uma cidade ribeirinha mais imponente, em termos de densidade populacional e boa infraestrutura econômica. Também é considerada, juntamente com São Francisco, a melhor folia momesca do interior mineiro, garantia de bom carnaval. Festei em ambas.
Como estava de férias em Montes Claros, e visivelmente entediado, resolvi aceitar o convite do amigo, pessoa por quem sempre nutri grande simpatia. De antemão, sabia que embarcaríamos num ônibus velho, sacolejando por respeitáveis quilômetros em estradas cascalhadas e poeirentas. Tudo bem, era a realidade da época: não se falava sequer na possibilidade de asfaltar as rodovias de acesso aos polos ribeirinhos.
Claudinho Vieira, chegado nosso, integrante esporádico da turminha da Matriz, garantiu que aquela seria uma viagem maravilhosa, inesquecível: só faltou acrescentar que seria também uma jornada pra lá de penosa…
Saímos de Montes Claros ao meio-dia, e chegamos a Brasília de Minas cerca de duas horas após. Dali, depois de Claudinho conversar com conhecidos sobre carros à venda, analisando a possibilidade de fechar negócio, embarcamos numa caminhonete C-10, equipada com capota de lona. Foi aí que começou a aventura de arrependimento…
Claudinho, sempre sorridente, detentor de bom-humor inabalável, informou estarmos, naquele momento, a caminho de Januária, lugar onde mal permanecemos, logo voltando ao sacolejo sufocante de uma estradinha esquisita, rumo a São Francisco.
O motorista pisou fundo no acelerador, a fim de chegar a tempo de efetuarmos a travessia no Velho Chico. A balsa encerrava os trabalhos de transporte no final da tarde, disse Claudinho. Nem preciso acrescentar que bateu um arrependimento feroz quando percebi a fria em que entrara…
No pula-pula de buracos que a caminhonete transpunha velozmente, perguntei a Claudinho se faltava muito para chegarmos ao rio. “Bem ali”, respondeu tranquilo. Não me convenceu tal resposta, pois conhecia o famoso “ali mineiro”, capaz de comportar distâncias respeitáveis, sempre traduzidas em caminhos curtos.
Foi mais ou menos o que aconteceu naquele dia: percorremos quilômetros e mais quilômetros confinados na carroceria coberta da C-10. Volta e meia, eu espiava o interior da cabine do veículo, e percebia que o motorista corria contra o tempo. Claudinho anunciou que provavelmente teríamos que passar a noite no povoado que ladeava o rio. “A balsa deve estar quase parando agora…”, previu acertadamente. Incrível como sorria de tudo!
Com o arrependimento em alta, eu não achava graça em nada que Claudinho contava, pensando que bem poderia estar lanchando em frente à TV se não tivesse embarcado naquela aventura desconexa…
“Estamos chegando ao rio, pessoal!”, gritou o amigo, ar triunfante. A S-10 deteve a marcha próximo à rampa de embarque na balsa, cujo motor Mercedes ecoava forte do outro lado do rio. “Agora, garotada, é só aguardar!”, foi o comentário esperançoso de Claudinho. Porém, em questão de minutos o motor da balsa silenciou de vez, enquanto as sombras da noite começaram a se impor no leito do antes imponente rio, hoje um manancial condenado a virar corredor desértico de areia…
O motorista informou que a travessia não aconteceria mais naquele dia. Sem dar o braço a torcer, Claudinho se dirigiu a um sujeito que parecia ser o encarregado do negócio do lado em que estávamos, e veio nos explicar, meio sem-graça, que o tempo extrapolara. “Vamos ter que dormir por aqui; só amanhã, a partir das 6h, a balsa recomeça suas atividades…”
Se olhar realmente traduz sentimentos, o amigo deve ter percebido minha fúria: aquela notícia era desastrosa para quem imaginava passar a noite numa cama aconchegante e com o estômago bem nutrido…
O motorista da caminhonete foi o único que se deu bem, improvisando um travesseiro com a almofada que usava para amenizar a pancadaria de buracos nas nádegas. Também o flagrei devorando um sanduíche às pressas, certamente para não dividir com ninguém. Quanto aos demais passageiros, restava se acomodar na apertada carroceria…
Claudinho manteve o costumeiro sorriso feliz, como se o referido imprevisto fosse adendo prazeroso naquela viagem. O calor insuportável, reinante no interior da caminhonete, nos obrigou a ficar sentados perto do rio, mas aí fomos atacados por insetos sedentos de sangue humano. Melhor enfrentar o calor…
O citado povoado, se é que podemos chamá-lo assim, se resumia a poucas casas, todas em estado precário, aparentemente desabitadas. Algumas, sem portas e janelas, tomadas de mato. Em vão, batemos na porta dos precários imóveis que pareciam habitáveis, antes de a escuridão tomar conta de tudo por ali. Ninguém apareceu…
A situação ficou mais complicada quando o calor escaldante da tarde {e início da noite} foi substituído por um frio danado, acrescido de ventania fustigante. Não demorou a cair uma tímida chuva, logo transformada em temporal. Nesse meio tempo, estávamos todos embarcados novamente na caminhonete, açoitados por ventos gelados e uma bruma polar. A capota de lona tinha frestas que permitiam entrar água…
Sem dar o braço a torcer, o anfitrião dessa agonia, Claudinho, falou que gostava de chuva e do estardalhaço da natureza. E também discorreu sobre o sol nas praias de São Francisco, as águas lânguidas do São Chico. Difícil imaginar alguma calidez durante aquele turbilhão tempestuoso…
Nem preciso dizer que não havia levado nenhum tipo de agasalho, e o bate-queijo foi inevitável horas após; minhas mãos se assemelhavam às de um defunto, enrugadas como as de um ancião. E eu só tinha 17 anos nessa época!
O sono também não colaborou, simplesmente sumiu do mapa; nunca as horas me pareceram tão longas, a ponto de poder contar os assovios de vento na lona sacolejante, a cada rajada. E lá vinha mais frio…
A certa altura da madrugada, corpo dolorido pela incômoda posição e com dor de cabeça latejante, eu só sonhava em beber água potável e me alimentar dignamente. Aproveitei breve pausa da chuva e saí para tomar ar-fresco. A ideia era minimizar a sensação opressora dentro daquela carroceria, confinamento terrível. Admirei-me ao ver que Claudinho e as outras pessoas roncavam placidamente…
Não encontrei nada interessante lá fora, mas a bexiga foi esvaziada intempestivamente na lateral de um casarão abandonado. O estômago roncou de modo esganado, mas sabia que teria que esperar o amanhecer. A angústia aumentou mais e mais a fome…
Finalmente, os primeiros raios solares descortinaram uma manhã nublada, e então pudemos escutar o barulho do motor a diesel da balsa sendo aquecido do lado oposto do rio. Não tardou pra que atracasse e embarcássemos, iniciando a travessia {meio de banda} por águas abundantemente serenas. O Rio São Francisco deu mostras de estar receptivo para nos acalentar do sufoco vivenciado na madrugada…
Claudinho, sempre é bom lembrar, ainda sorria fácil e falava alto. Caramba! Aquele sujeito tinha humor pra dar e vender!
Tentei me reanimar ao pensar que lá, em São Francisco, iria aproveitar do bom e melhor. O contratempo experimentado por ora apenas aqueceu minha vontade de festar, impunha ao pensamento.
Fui pensando nisso enquanto percorríamos a estrada de acesso à terra de Claudinho. Minha ansiedade era para que o motorista parasse em alguma venda, já sonhando com biscoitos, pães frescos, café, etc. e tal. Mas o homem tinha pressa em chegar, e vi vários armazéns de beira de estrada ficarem pra trás. Nem todo mineiro é chegado num bom café da manhã…
Quanto aos demais passageiros, eles voltaram a dormitar tranquilos, indiferentes ao sacolejo da caminhonete e à poeira que invadia o cubículo de lona. Claudinho os olhou com troça, mas não inquiriu se eu estava gostando daquela viagem. “Ele sorri apenas para não dar o braço a torcer; também está extenuado e com muita fome, só não admite”, imaginei sarcasticamente.
CONFUSÃO E FIM DE FESTA DE CASAMENTO
Já em São Francisco, a coisa pareceu melhorar muito, principalmente à noite, quando baixamos numa monumental festa de casamento. O problema maior foi uma discussão que Claudinho teve com um sujeito parrudo, arrogante, e nem vi direito como a briga começou, espalhando mesas, cadeiras, comida e debandando com convidados.
Um tenente do Exército, amigo de Claudinho, integrava o nosso grupo, e confiantes nele não abaixamos a cabeça para ninguém. O tenente, aliás, pivô de toda a confusão, foi o primeiro a voar cadeiras pelo salão festivo. Gostamos dessa cena de valentia e aderimos ao esporte de acaba-festa-de-casamento! Quanta gritaria de mulheres e a fuga em massa de quem pensava ter uma noite de valsa!
Naturalmente, apareceram alguns seguranças locais, e não estavam com jeito pacífico, pelo contrário: para não apanhar, também me municiei de uma garrafa de cerveja, ameaçando quantos viessem em minha direção. Eram muitos…
Resultado: fugimos dessa festa acuados por um bando de seguranças, e o pernas-pra-que-te-quero foi exercitado pelas ruas desérticas de São Francisco. Escutávamos os próprios passos de corrida desesperada eclodindo com os paralelepípedos. O dilema era encontrar algum abrigo para fugir dos leões de chácara que tentavam nos capturar. Mesmo com boa dianteira desses raivosos inimigos, era possível escutar seus gritos de pega-pega!
Nessas alturas, o tenente valentão, amigo de Claudinho, sumiu na frente, e restou seguir Claudinho para ver qual lugar seria o melhor para nos abrigar, ocultando nosso paradeiro dos seguranças da festa.
Esperto, Claudinho nos conduziu para o interior de um hospital municipal, alojamento improvisado e providencial para aquela noite de puro sufoco. O vigia, amigo dele, até sorriu da desventura pela qual passamos, e disse que poderíamos ficar ali durante a noite. “Então, vocês acabaram mesmo com a festa de casamento, que legal!”, comemorou às gargalhadas.
Difícil foi conciliar no sono ali dentro: camas que acomodavam pessoas doentes, lençol suspeito de ter coberto algum cadáver. Mas era bem melhor do que sair e apanhar feio do grupo vingador da festa, visto que as vozes ainda ecoavam fortes nas proximidades. Felizmente, os marmanjos seguranças não nos encontraram. Aliás, creio que nenhum deles pensou que seus perseguidos estivessem dentro de uma unidade de Saúde…
Felizmente, tratei de debandar de São Francisco no outro dia, temendo que mais aventuras do tipo pudessem ter final catastrófico. Claudinho se despediu sorridente, lamentando não ficar mais no seu berço natal. “Volte sempre”, convidou. O convite me pareceu uma piada…
É por essas e outras que, doravante, sempre procurei saber tim-tim-por tim-tim sobre trajeto e acomodações de qualquer projeto de viagem que tentem me inserir, por mais confiável que seja o organizador. Porque, para ser quase torturado, a exemplo dessa viagem em São Francisco, melhor é ficar em casa!
Continuo, lógico, gostando – e muito – do amigo Claudinho. Ainda retornei lá, na sua terra, em duas ocasiões diferentes, mas cumprindo missão jornalística, ambas as viagens de avião: aterrissamos cedo e decolamos, horas depois, no Corisco turbo, propriedade do advogado Odorico Mesquita. De outra feita, a convite do piloto Décio Cecílio de Freitas, eu e Humberto Velloso Reis embarcamos num Piper PA-28, voando até lá. Agora, se o amigo Claudinho surgir com uma S-10 me convidando para um novo passeio pelas margens do Rio São Francisco, naturalmente que vou sair correndo…