Por João Carlos de Queiroz – Lá pelas bandas perdidas das terras mineiras, quando o Trem Azul da Rede Ferroviária Federal Sociedade Anônima ainda circulava entre Bahia e São Paulo, atravessando importantes cidades da região, entre elas Montes Claros (“Princesa do Norte”), tive oportunidade de conferir situações controversas à comodidade buscada em trânsito ferroviário. Uma delas dizia respeito à precariedade dos exíguos recintos sanitários, que comportavam vaso metálico e pia minúscula, água ejetada por pressão.
Havia sanitários mais limpos nos vagões poltrona-leito e leito, conferi nas andanças passa-tempo pelo interior da composição. Mas a coisa piorava drasticamente na segunda e terceira classes, carros de qualidade bem inferior. O da terceira classe comportava triste turma aventureira, em fuga aberta dos tórridos rincões sertanejos. Gente paupérrima, repleta de crianças maltrapilhas e famintas, pedindo cuidados e muito banho. Cenas de cortar o coração…
Já da porta de vidro, sentia-se o odor acre daquele ambiente, reforçado por fedentina nauseante de fezes e urina. Adentrar num sanitário daquele vagão, aprendi, era realmente arriscado…
Assim, nas muitas viagens que empreendi no lendário Trem Azul, não passei de olhadela rápida ao interior dos imundos recintos de descarrego intestinal existentes na terceira classe, usando os demais (poltrona-leito e leito) com certa reserva. Isso porque mal cabíamos ali dentro, e no ato do cerramento da porta, após nos acomodarmos no trono, os pés se tornavam calço natural.
O interessante é que esses vasos sanitários não contavam com descarga, pois os dejetos caíam diretamente entre os trilhos, sendo pulverizados pela velocidade e ação trucidadora da natureza. Daí a explicação para o mau-cheiro exalado da via férrea em pontos isolados das estações…
Agora, se a operação sanitária se restringisse apenas ao número 1, era bem mais fácil. Inclusive, podíamos apreciar o esguicho disperso de urina lá embaixo, sob o matraquear ininterrupto da marcha do trem. No caso do número 2, cabia apenas a imaginação do destino da massa intestinal descartada num pequeno tubo de acesso ao aconchego dos trilhos. Há coisas que é melhor nem vermos…
Já a diminuta pia, exigia várias flexões seguidas na bombinha para liberar ducho de água gelada. Tínhamos que ser rápidos nesse processo, a fim de não ficar com a boca encharcada de creme dental, à espera do próximo ducho…
O ruim de tudo era quando algum apertado batia de forma insistente na porta do sanitário do trem, exigindo nossa saída rápida. Dependendo do almoço (servido a bordo), a liberação do incômodo assento podia ser rápida ou demorada. O lado bom era que ninguém escutava as deselegantes pipocadas estomacais por causa da imponência do barulho ritmado das rodas logo abaixo, algo lembrando a triste matraca do martírio de Cristo na Sexta-Feira da Paixão.
Com todos esses incômodos, foram deliciosas viagens de trem, e a cada chegada também me inquiria se aqueles sanitários passariam por boa higienização antes de a valente composição retornar ao miolo baiano para resgatar mais sofridos retirantes da seca…