Ambas padeciam de doenças incuráveis, e padeceram bastante, antes do previsível óbito sentenciar descanso eterno. Apenas uma delas conseguia andar tropegamente, apoiada por bengala. Essa última residiu no bairro Roxo Verde, casas geminadas. Economia de construção, acho. Bastava colar o ouvido na parede para ouvir tudo, do outro lado. Geralmente, lamentos doloridos da menina; ou sons confusos, ininteligíveis…
Por ser dentuça e magrela, eu a discriminava abertamente, exibindo língua de troça toda vez que a pobrezinha ensaiava passos no alpendre da casa. Minha mãe sempre me recriminava, instruindo para não ser tão maldoso. Dizia isso sem muito ênfase: sabia que crianças de cinco anos não têm juízo. Fui um canalha hipócrita, hoje sei…
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Uma tarde, passei além da conta: não somente exibi língua provocadora, mas também xinguei a garota doente, que me olhou fixamente, sem entender.
De repente, tomada de fúria, a menina grunhiu puro ódio, apontando o dedo em minha direção. Corri apavorado, temendo que ela fosse atrás. Minha mãe quis saber o motivo de estar com os olhos estatelados na porta da casa.
AO VOLTAR da escola no dia seguinte, notei estranha movimentação na casa vizinha. Fui informado que a menina morrera ao amanhecer. Pronto! Sou o culpado! Cismei que faleceu em decorrência da raiva que a fiz passar na tarde anterior.
– Vamos lá, filho! A menina descansou, finalmente! Vou rezar por ela! – disse minha mãe.
Adentramos na casa, eu segurando firmemente na saia materna, por precaução, e fomos até o quarto do velório. A garota jazia na cama, não num caixão. Estava ladeada por velas comuns, narinas entupidas de algodão. Um lenço segurava seu queixo para não arquear a boca.
A fisionomia da morta evidenciava contração estranha, como se tivesse morrido em meio a uma grande dor, aborrecimento. Deduzi que tudo foi por minha causa; saí de lá mais apavorado do que entrei.
Em casa, não arrisquei sequer a entrar no quarto sozinho, ou a abrir o guarda-roupas, temendo que a menina doente viesse me assombrar.
Por algumas noites, curti medo medonho ao perceber que meus pais dormiam e tudo estava em silêncio na casa. E se a menina entrasse de repente no quarto?
Por mais que tentasse, a última visão que tive dela [prostrada no leito sem vida] me perseguiu por algumas semanas: aquela imagem do algodão ensanguentado não saía da minha cabeça…
SEGUNDO VELÓRIO…
Já a outra menina doente, coitadinha, nossa vizinha da Rua Cel. Celestino, viveu confinada na cama por mais de uma década; dali saía sempre carregada, apenas para banhar.
Era uma criança gritadeira, com chororô contínuo, gradualmente perturbador. Dava para ouvir os berros guturais até na rua. Seus pais, evangélicos, costumavam nos pedir desculpas pelo transtorno que a criança doente causava.
– É uma inocente menina. Ela não nos perturba, não! – resposta compreensiva dos meus genitores.
Um corredor apertado separava nossas casas, sendo possível ver toda a movimentação interior da casa pela janela do meu quarto, mais alto. Como aquela menina dava trabalho! Pobres pais…
Até para comer, observei, era preciso segurar seu queixo, pois, caso contrário, a comida despencava na roupa. Vez ou outra, ela dava tapa na bandeja, derramando tudo. E voltava a gritar desesperada, sem qualquer sentido.
Com quase sete anos, passei a provocá-la com meus velhos métodos de língua e caretas. Ela me encarava evasivamente, repetindo mais gritaria. Os pais entravam esbaforidos no quarto ao ouvir tanta balbúrdia. Eu, lógico, já havia abaixado espertamente o corpo na janela…
A MORTE dessa menina foi igualmente movimentada, e preferi nem ir lá, a despeito da insistência dos meus pais. Seria um novo filme de terror, pois jamais esquecera as cenas de morte da menina do Roxo Verde…
Pelo quarto, vi o caixão branco, com ornamentos dourados, exposto na sala de estar, véu branco cobrindo a morta. Não tinha sequer um buquê de flores!
Imaginei sua cara de desgosto por ter partido, quando poderia ainda estar viva, apesar das limitações físicas e mentais. Foi um velório movimentado, registrando entra e sai de gente que não conheci.
Em dado momento, meus pais se acercaram da defunta de forma consternada, acariciando seu rosto disforme após levantar o véu. Precisavam pegar na defunta?
Ao retornarem, explicaram que ela faleceu em decorrência de pneumonia grave. Minha mãe disse que iria preparar um jantar bem legal pra mim.
Pela primeira vez, mesmo estando com fome, recusei. Preparar comida depois de ter alisado defunta?!
Lógico que, ao rolar sequencialmente por horas na cama, tentando dormir, imaginei que cometi grande besteira ao recusar o jantar: minha mãe era craque em preparar suculenta sopa de mandioca.
Por João Carlos de Queiroz, jornalista
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