O menino perdido nas entranhas de Bocaiúva…

É prazeroso rememorar tempos vivenciados de forma esplêndida, sem que tenhamos percebido isso integralmente, na época. Explica-se: na sequência célere do calendário, os fatos transcorrem sem que possamos acompanhar tudo atentamente. Mais à frente, feito fantasmas, ressuscitam do nada, passando a projetar imagens saudosistas.

Refiro-me, por ora, às minhas férias escolares em Bocaiúva, onde atazanava a paciência das bondosas tias paternas, formando gang bagunceira com os primos e tios mais novos.

Tio Armando Queiroz era nosso guia, espécie de poderoso chefão! Ainda que condescendentes, as tias sabiam residir nele permanente incentivo bagunceiro aos pequenos.

Armando se divertia pacas ao ver o resultado de tudo que aprontávamos: desligar relógios das casas e desinflar pneus de carros se incluía na diversão Consigo quase ouvir suas gargalhadas incontroláveis…

Impotentes, as tias nos aconselhavam inutilmente. Citavam que as queixas de vizinhos não paravam de chegar. Fomos flagrados saltando muros, desligando relógios, batendo nas portas ou jogando coisas no alpendre.

Para não antecipar meu regresso a MOC, eu prometia solenemente ser bonzinho, obedecer sem pestanejar. O olhar inteligente das tias já dizia não ter convencido nada…

Desde à mais tenra infância, curti a antiga cidade desde os tempos em que cavalos se sobrepunham em quantidade maior pelas ruas, se comparados aos carros.

Passeio angustiante…

Certa ocasião, aproveitando descuido de tia Laura, saí sozinho à tarde para andar pela cidade, e de repente dei-me conta de estar completamente perdido, sem saber para onde ir. Tinha então uns cinco anos, no máximo, e era meio bobinho; ou totalmente, para ser mais enfático…

Assim, ao cair num lugar desconhecido, passei a olhar incessantemente para tudo ao meu redor, na tentativa de resgatar algum indício familiar. A imagem da casa velha da tia passou a ser zona perseguida de conforto…

Foi assim que fiquei horas e horas perambulando pela longa Avenida Dom Pedro, dali adentrando nas apertadas ruas laterais. Essa foi uma escolha que piorou duplamente minha desorientação: de modo insosso, permaneci parado em frente a um armazém, na esperança de ser reconhecido pelos transeuntes. Nada aconteceu…

Muitos andavam pra lá e pra cá o tempo todo, alguns a cavalo. Umas duas moças fizeram rápido cafuné nos meus cabelos macios, mas nem pararam para saber o porquê de estar ali, feito estátua.

Pensei em pedir ajuda, explicar ser de outra cidade e não saber como chegar na casa das tia. Desisti pelo medo de rirem da minha expressão aflita. Sabia estar assim…

Ademais, na progressiva aflição de retornar antes que a noite me colhesse perdido em algum lugar de Bocaiúva, pois já passava das 16h, olhei temeroso para os gigantes insensíveis em trânsito interminável pelas ruas.

Mais minutos transcorreram e caí em si: era um guri solitário, perdido, à mercê da indiferença humana: nenhum deles tinha qualquer interesse em ajudar uma criança tão pequena!

Deve ter sido a partir daí que comecei a chorar de mansinho; e sem perceber, acuado pelo medo, logo estrondou berreiro de socorro. Uma última cartada espontânea, gerada pelo medo…

– Você está perdido, bebê? – indagou uma senhora ao me suspender no colo sem esforço. Não pesava muito.

Minha carinha deve tê-la comovido, e respondi apenas um “estou”. Pronto: confessara meu problema, finalmente!

A mulher começou a perguntar a todos se alguém me conhecia, sem êxito. Foi assim que surgiu o fazendeiro Célio, tio adotado por mim, que me reconheceu logo de cara.

– Joãozinho?! Cadê sua tia? Fazendo aqui o quê?

Ao ver o primeiro rosto conhecido, estiquei braços confiantes para o saudoso Célio me acolher, e ele explicou à mulher que eu era um quase sobrinho.

– É filho de Carlos, irmão de Laura, auxiliar do dentista do hospital. Vou levá-lo, pode ficar tranquila.

A mulher confiou, lógico, visto conhecer Célio e ter observado a minha mudança serena de comportamento. Temendo que ela não deixasse Célio me levar, eu também disse:

– Ele conhece minha tia Laura. E eu vou sempre na fazenda dele! Lá é bem legal! Tem laranja doce!

Ouvir aquilo de um menino de cinco anos a convenceu de vez, e ela agradeceu a Célio, dizendo estar aliviada pelo desfecho do caso.

EMBARQUEI no jipe de Célio e já fui até cantarolando feliz rumo à casa de tia Laura, que morava numa pracinha central.

Mal chegamos, algumas tias, incluindo tia Laura e primos maiores, saíram quase correndo, gritando GRAÇAS A DEUS! bem alto. Célio explicou ter me encontrado num dos becos laterais à Dom Pedro.

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DALI em diante, tive problemas para sair sozinho mesmo na praça frontal à casa, pelo simples suposição de que poderia partir rumo a destinos que se tornariam outro pesadelo para mim e meus familiares.

Nem contei às tias que, com pouco mais de três anos, fugi de uma creche central em Montes Claros, indo parar na Praça Doutor Carlos, local de mais gigantes perambulando sem parar. Ainda bem que as cuidadoras da creche me localizaram logo…

Por João Carlos de Queiroz, jornalista