Nos primórdios dos anos 60, então na fase imberbe, tudo se constituía em novidade atrativa aos nossos olhinhos extasiados, incluindo mudança de casa. Havia pensamentos conflitantes a cada transferência de moradia: seria legal morar lá? Teríamos amiguinhos para brincar? Os vizinhos não implicavam com crianças?
Assim, mal chegávamos ao novo endereço, ainda na fase de desembarque da humilde mobília, tentávamos estabelecer vínculos de amizade com a meninada vizinha. Os guris sempre cercavam o caminhão, obviamente curiosos para saber quem moraria ali.
Aprendi que, em casos semelhantes, o ideal era manter franco sorriso de cordialidade, a despeito de algumas carinhas bisbilhoteiras evidenciarem franca desconfiança. O restante da turminha costumava nos acenar de modo feliz, gesto típico de boas-vindas. Cena que se repetiu nos lugares em que moramos…
Também foi assim numa casa velha, de paredes gastas e telhado em V invertido, próxima à Avenida Geraldo Athayde, formato de caixão de defunto. Foi meu pai quem disse isso, ao observar o imóvel com olhar crítico. Logicamente, não gostei nada dessa associação…
NAQUELE entra e sai de gente transportando móveis e quinquilharias, percebi que um gurizinho branquelo, de cabelos encaracolados, cismara de me seguir o tempo todo. Eu não disse nada, temendo espantar um possível novo amigo. Mas… que esquisitice aquilo!!!
O menino também não balbuciou uma só palavra, e acompanhou, passo a passo, o desembarque da mudança e acomodação da mobília nos cômodos da casa. Ainda me intrigava aquele telhado, aparentemente desafiando a lei da gravidade. Mantinha-se suspenso por farto madeiramento cruzado. Seria seguro?
Com as coisas desembarcadas do caminhão, restava agora descansar um pouco. Foi uma mudança extenuante. Aliás, mais uma…
Finalmente anoiteceu, e eu e o mano Zé ficamos calados, pensando que, naquele dia, o jantar seria algum pão com salame, julgando-se pelo amontado de coisas que teriam de ser arrumadas em cada quarto e sala. Fui à cozinha beber água e não encontrei a moringa, questionando minha mãe sobre seu paradeiro.
Ela percebeu nossa impaciência, cansaço e… fome.
– Trouxe sanduíches pra vocês!
Ofereceu-nos limonada e o previsível pão com salame, acrescido de manteiga salgada. Meu pai trabalhava na cooperativa de lacticínios e sempre trazia alguma de lá.
Já sonolento, tentei me ajeitar na cama do quarto enorme antes mesmo do mano Zé, que tagarelava sem parar com meu pai. As vozes foram se tornando longínquas…
Aos poucos, os olhos pesaram a caminho de sono profundo, quando algo gelado tocou a ponta do nariz, assustando-me. Era o menino branquelo!
– Ei, você! Não devia estar em casa? Já é tarde, garoto! Sua mãe deve estar preocupada… – disse contrariado. Não gostava de surpresas do tipo…
O menininho sorriu matreiro, e saiu do quarto agilmente, em passos saltitantes.
Escutei a porta ser aberta e fechada, e, na sequência, silêncio geral. “Pronto! Agora foi embora de vez!” – pensamento de alívio.
Incomodou-me ser seguido por aquele malandro por horas seguidas, durante a mudança. Ninguém devia ligar pra ele em casa…
Cabeça no travesseiro, voltei à tarefa de conciliar no sono interrompido.
As vozes dos familiares se tornaram gradualmente distantes, e nem percebi o apagão do consciente, emergindo no mundo dos sonhos. Vários, por sinal…
Acordei sobressaltado ainda de manhãzinha, a tempo de ver filamentos solares irrompendo felizes nas paredes do quarto. Calculei que isso se devia ao arsenal de telhas quebradas da casa velha. “Vou avisar pai disso…”
Também um galo desconhecido cantou solene, irrompendo sonora convocação de despertar coletivo. O barulho de carros passando nas proximidades se somou a cantos de pássaros. Deu pra perceber o sufoco choroso de caminhões na subida da Avenida Geraldo Athayde. Rampa pesada, sem asfalto…
Abri preguiçoso a boca, buscando ânimo para sair da cama. Optei por prestar atenção na nova rotina do lar…
Os chinelos de minha mãe cadenciaram passos curtos a caminho da cozinha, e por bom tempo pude ouvir arrumação de panelas na área anexa ao quarto.
Mais luz solar invadiu o quarto, e vi que o mano Zé estava literalmente largado na cama, certamente sonhando com algo bom. Parecia sorrir…
Já meu pai, deduzi que saíra bem cedo, conforme seu costume. Por vezes, deixava café pronto, que encontrávamos frio no bule verde. Nós nos mudamos justamente para favorecer seu deslocamento à cooperativa, ali pertinho.
Matutava sobre isso quando percebi um vulto esguio passando pelo centro da casa, de acesso ao meu quarto e outras dependências. Era o menino! Dirigiu-se direto para a cozinha. Minha mãe o recriminaria, com certeza.
– Ah, não! De novo esse garoto?! – exclamação raivosa.
Desse jeito, ele jamais seria meu amigo! Onde já se viu perturbar as pessoas tão cedo?
Minha mãe parece tê-lo ignorado, pois não escutei nenhum cumprimento à chegada do pequeno intruso na cozinha. Deve tê-lo ignorado. Animou-me, pelo menos, saber que teríamos café da manhã…
FIM DA PRIMEIRA PARTE
Já perto do meio-dia, quando embromava para comer quiabo com ovo cozido, o almoço do dia, argumentei que aquela comida babava muito. Fui recriminado seriamente pela professora MARIA ENY.
– Olhe, filho, é só o que temos hoje. Amanhã, prometo, farei alguma coisa bem deliciosa! Mas, por ora, coma um pouquinho só, coma! Senão, não tem pedaço de rapadura na sobremesa. E você gosta, bem sei…
Ela disse aquilo com voz meiga e os olhos marejando lágrimas, coisa que não entendi a princípio, só depois…
Olhei para o prato vazio do meu mano Zé, que almoçou minutos antes, e empreendi garfadas generosas no prato de quiabo com ovos, sem ligar a mínima para a baba que vinha junto.
– Isso, garoto! Coma, coma, pois vou cortar dois pedaços grandes de rapadura para você!
Nunca disse a ela que minha decisão de mandar quiabo goela abaixo não foi atrelada à promessa do doce, mas, sim, à sua conduta amorosa, o jeito com que explicou ser o único alimento disponível naquele dia…
Mesmo criança, percebera que as finanças andavam baixas lá em casa, a começar pelo pão solitário no café da manhã, sem leite.
Assim, resolvi cooperar, denotando uma felicidade que, na prática, escondia sentimentos preocupantes. Devia ser difícil para uma mãe não dispor de alimentos para oferecer aos filhos. E se faltasse comida de vez?
Ainda arrotando quiabo, fui para o quarto, a fim de tirar uma soneca vespertina. Tarde de sábado é sem-graça demais. O mano Zé tinha ido jogar bola não sei onde, e nem quis me levar.
Mal me acomodei na cama, eis que o guri intruso surgiu inesperadamente no quarto, rindo divertido do meu bocão sonolento. Pelo visto, ele devia ser mudo, pois nunca dizia nada…
– Ah, meu Pai! Você fica nesse entra e sai aqui em casa sem ser convidado, guri! Não tem casa, pais, é? – disse sem paciência.
O menininho me fitou triste, e foi saindo devagarzinho do quarto, sem que entendesse direito que o magoara.
Minha mãe irrompeu a seguir, perguntando se falara com ela. Nem comentei sobre o garotinho intruso. Mas o admirei pela audácia de invadir residências alheias a bel prazer.
Lá pelas 22h, aconcheguei-me na cama de minha mãe para escutar as novelas de rádio que ela tanto adorava. Meu pai tinha ido pescar no Rio Verde Grande.
Ao perceber que estava atento à novela radiofônica, minha mãe advertiu que eu poderia ficar com medo, pois a narrativa tinha algo macabro. A voz do locutor tinha tom lúgubre… Manjem aí um dos trechos da tal novela:
“Na fazenda, longe de tudo e de todos, o vaqueiro Tião sonhava com sua falecida esposa, sem imaginar que a defunta o fitava ali pertinho. Só se deu conta disso depois que o jarro de argila se estatelou sozinho no chão. Também ouviu gargalhadas conhecidas – as de sua saudosa esposa Gertrudes…”
OUVINDO essa novela, senti arrepios incontroláveis, mas insisti em continuar. O locutor prosseguiu…
– É você, Gertrudes?! Veio me assombrar? – gritou o vaqueiro Tião, olhando para todos os lados do quarto. A defunta estava em algum lugar daquele ambiente!
Imaginando a cena de apuros do vaqueiro Tião, retesei a coberta, a fim de me proteger. Vai que a falecida Gertrudes resolve nos visitar também…
– Ué, filhote! Tá com medo, né? Eu avisei… Quer voltar pro seu quarto? – indagou minha mãe.
– Não, não, não! Eu quero ficar aqui!
Ela sorriu compreensivamente, continuando a escutar o “causo”.
O velho rádio a válvulas, apesar dos chiados, cumpria bem sua função. O problema é que minha mãe dormiu logo, e a voz soturna do locutor desandou para outros relatos amedrontadores. Melhor desligar o trambolho do rádio…
Descalço, dirigi-me ao criado da cama para desligar o rádio, mas retornei rapidinho ao forte-seguro do leito materno. Lá estava o menino intruso na porta do quarto! Ele me olhou com ar de troça, zombeteiro ao extremo. Muito audacioso esse carinha…
O pior é que entrou no quarto e começou a bisbilhotar a penteadeira e outras coisas da minha mãe.
– Pare de mexer aí! Vou acordar minha mãe e conto! – alertei.
Indiferente, ele continuou sua busca não sei de quê. Sem dúvida, passara dos limites…
Onde já se viu um garotinho invadir casas de madrugada?
Tomando uma decisão drástica, resolvi expulsá-lo, e pulei da cama, fulo de raiva, indo em sua direção.
Dessa vez, ao invés de sair em passos tímidos, de alguém magoado, ele me provocou ao botar língua pra fora. Depois, foi em direção à cozinha. “Agora eu te pego, seu pestinha”, raciocínio triunfante.
Corri à cozinha disposto a dar uma coça no franzino peralta. Curiosamente, o ferrolho da porta do quintal continuava trancado, robustecido por cadeado. E a janela também estava bem fechada. Onde, afinal, ele se escondeu?
Inútil foi vasculhar debaixo da pia, mesa, e até mesmo dentro do armário da cozinha. Nada do guri. Imaginei que ele conseguiu rastejar sorrateiramente de volta à porta da sala de estar, dali indo embora. Uma hipótese, apenas…
Disposto a tentar dormir, saí da cozinha após tomar um copo d’água. Novo susto: o quase boneco assassino, ou seja, o menino branquelo, estava posicionado justamente no centro da casa, onde eu passaria.
Ao invés do seu costumeiro olhar zombeteiro, claramente inofensivo, dessa vez o menino me encarou furioso, desafiador. Estanquei de imediato os passos na cozinha, alertado para ficar ali. O garoto intruso mostrara sua outra face…
OBS> depois concluo. Bateu preguiça.
FIM DA SEGUNDA PARTE
Por João Carlos de Queiroz, jornalista Mtb 381.18