Na última quinta (11), a NBA divulgou uma homenagem sem precedentes em sua história: o número 6, usado pelo ex-pivô Bill Russell, falecido em 31 de julho, aos 88 anos, será aposentado por todas as 30 franquias da liga. Num meio que produz estrelas em escala cada vez maior, com rostos e currículos mais ao alcance do público leigo do que Russell, a decisão chamou a atenção. Mas a verdade é que não é necessário fazer maiores reflexões para entender no que está fundamentada a iniciativa e como Russell deve se manter como o único a receber tal honraria por muito tempo.
O impacto (desconhecido, desprezado ou simplesmente não compreendido) causado por Russell no basquete, e principalmente na NBA, já o tornaria digno de ter recebido a homenagem ainda vivo. Mas é compreensível que o legado deixado por ele tenha recebido tal reconhecimento com a avalanche de reações do mais elevado respeito que a notícia de sua morte causou. No entanto, não foi por isso que o número 6 foi retirado. A tragédia ocorrida com Kobe Bryant em 2020, em um momento em que o ex-jogador ainda era extremamente presente no imaginário dos fãs (alguns deles atletas que estão em atividade), provocou possivelmente a maior catarse coletiva da história da liga, mas ele não recebeu homenagem semelhante.
Também não foi porque Russell seria, incontestavelmente, o melhor jogador que já pisou em uma quadra de basquete. Não que haja alguém incontestável nesse sentido, mas, para efeito de comparação, Michael Jordan, a resposta mais comum para a pergunta “quem foi o melhor da história?”, só teve o número 23 aposentado por duas franquias: o Chicago Bulls e o Miami Heat (pelo qual nunca atuou, aliás).
Seguindo neste raciocínio, também não foi somente pela luta pela causa dos direitos civis e humanos que Bill Russell foi alçado a tal patamar. No presente, as tensões sociais movidas por discriminações raciais sofridas por negros nos Estados Unidos voltaram a um ponto de ebulição, como aconteceu nas primeiras décadas da carreira de Russell, nas décadas de 1950 e 1960. Hoje também temos figuras de imensa projeção dentro de quadra que se colocam como líderes fora dela. Um deles, LeBron James, até por conta da resistência que encontra por fãs de outras equipes da NBA, provavelmente jamais receberá homenagem assim. Na verdade, James é um dos atuais portadores do número 6, no Los Angeles Lakers (A NBA confirmou que os atletas que vestem o 6 às costas no presente poderão continuar a usá-lo. Mas assim que mudarem de time ou pararem de jogar, o número vai embora junto. Em algum momento na próxima década, nenhuma franquia terá o 6 à disposição).
Que fique claro: não é porque nenhum desses (e outros) ícones do basquete sejam dignos ou que devamos procurar por falhas em suas trajetórias para não lhes dar a honra de terem seus números aposentados pela liga. É porque ele foi um pouco de tudo que eles foram e uma coisa que nenhum deles foi: pioneiro. Para usar uma expressão que faz sucesso atualmente, Russell caminhou para que o basquete (e os astros modernos) pudessem correr.
Numa sociedade que parece faminta pela divisão, pela busca por um ponto fraco, pela recontextualização (ou descontextualização) para se desvalorizar uma grande figura pública, o ex-gigante de 2,08 metros, como atleta e personalidade, consegue se defender dos ataques pelos dois lados.
Esportivamente, em termos de currículo, com o óbvio adendo de que o basquete é um esporte coletivo, ele tem talvez o retrospecto mais vitorioso da história da modalidade e, possivelmente, do esporte mundial. Na principal liga do planeta, é o jogador com maior número de títulos: 11. Foi bicampeão universitário e campeão olímpico. Também conquistou cinco troféus de MVP (Jogador Mais Valioso). Curiosamente, o prêmio de MVP das Finais da NBA leva o nome de Russell, embora ele próprio nunca o tenha vencido. A premiação foi criada justamente no último ano da carreira dele, em 1969, quando ele ganhou o derradeiro de seus 11 títulos, mas quem levou foi Jerry West, do Los Angeles Lakers, até hoje o único MVP de finais que não estava no time campeão.
E já que mencionei a defesa aos ataques dos críticos, Russell é, possivelmente, o atleta que mais revolucionou a defesa no basquete. Ele chegou a uma NBA ainda incipiente, predominantemente branca e muito focada em fundamentos e princípios básicos, e rapidamente mudou o perfil racial, físico e de compreensão tática e técnica do esporte. Imponente e inteligente, desafiou a ideia de que só se deveria defender a cesta com os pés fixos no chão. A fisicalidade do jogo só cresceu, a fatia de jogadores negros também (hoje são aproximadamente 73% da liga) e agora a NBA e o basquete em geral são muito mais dinâmicos e os tocos (que só passaram a ser contabilizados nas estatísticas oficiais da liga após a aposentadoria de Bill Russell) adicionaram um novo elemento de entretenimento ao jogo. Ele foi a primeira superestrela negra em um esporte cuja identidade, hoje, é completamente associada a superestrelas negras.
Por último, o que demarca o ar rarefeito respirado pelo ex-atleta foi a consciência do seu papel em mudar o status quo. Por mais vencedor que tenha sido em sua carreira, Bill Russell nunca deixou de sofrer com o racismo. Durante os anos de jogador, segundo relatos dele próprio, foram inúmeras as situações degradantes que viveu, mesmo na cidade na qual atuou por 13 temporadas, como jogador e técnico. Ele teve dificuldades de conseguir comprar uma casa em Boston por não encontrar vendedores interessados em negociar com um negro. Quando enfim pôde firmar um lar, ele foi vandalizado em mais de uma ocasião, com pichações de termos racistas e gestos repugnáveis, como a vez em que invasores defecaram em sua cama.
Este não foi o começo para ele, que contou ter convivido com a discriminação latente nos Estados Unidos desde a infância. Porém, Russell não ficou calado. Engajou-se na luta por direitos e igualdade, participando da marcha sobre Washington em 1963 e sendo uma das principais lideranças negras no esporte, junto a Muhammad Ali (outrora Cassius Clay) e Kareem Abdul-Jabbar (antes Lew Alcindor). O livro lançado por ele em 1965, “Go Up For Glory” (Suba para a Glória, em tradução livre), contando as experiências e desafios de crescer e lidar com o racismo já como uma superestrela, foi uma das pedras fundamentais nas discussões no meio dos atletas negros que culminaram no histórico protesto contra o racismo protagonizado pelos corredores Tommie Smith e John Carlos no pódio das Olimpíadas da Cidade do México, em 1968.
Por todos esses motivos, me permito opinar: considero mais do que justa a homenagem. O legado que uma grande figura deixa se manifesta em ações inspiradas por ela, mas também pelos simbolismos que não nos deixam esquecer dela. No basquete, cuja natureza nunca foi ligada a padrões numéricos como o futebol (modalidade na qual é comum a equipe titular usar a numeração do 1 ao 11), retirar um número do uso geral tem muito menos impacto no futuro do esporte. É uma taxa minúscula perto de tudo que Bill Russell trouxe para o jogo. E, caso alguém argumente que ele não foi importante ou que o legado é mais para o Boston Celtics do que para a liga ou para a modalidade, acredito que isso diz mais sobre essa pessoa do que sobre o eterno camisa 6.
É quase impossível aparecer alguém tão inegavelmente talentoso, revolucionário, instigante e, principalmente, pioneiro quanto ele. Assim, ficar com um número a menos para se vestir está longe de ser um problema.
Edição: Fábio Lisboa