[PRIMEIRA PARTE]
Montes Claros – Ao nos mudarmos, em 1961, para a casa mais esquisita que meu pai já alugou, eu não fazia a mínima ideia dos sombrios apuros que viveria entre suas paredes. Imóvel caquético, de traçado retangular, com telhado côncavo {similar a capelinhas de cemitério}. A princípio, parecia ser um lar bem tranquilo, capaz de abrigar pacificamente uma família. As aparências enganam…
Desejosa de auxiliar nas despesas domésticas, pois ainda não se formara, minha mãe instalou a máquina Singer bem à entrada da sala, dali irradiando ininterrupta propaganda barulhenta de serviços. Gostava muito de confeccionar roupas. Talvez conseguisse encomendas…
O tec-tec-tec ritmado da fiel Singer sempre chamava a atenção dos transeuntes. Dava gosto assistir os pezinhos da matriarca pedalando firmemente. As peças prontas iam sendo sobrepostas ao lado, em cima de banquinho: calções, shorts, camisas, etc…
Vez ou outra, ela remendava roupas trazidas por meu pai da cooperativa, dele e dos colegas: camisas de tecido rude e macacões de tamanho variado. Exalavam nauseante odor de leite e manteiga a distância considerável…
Anos depois, um motorzinho dispensou essas obrigatórias pedaladas, tornando-se ruído zumbidor pela casa toda. Não recordo por quanto tempo a sala de costura funcionou na entrada da casa…
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Uma noite, enquanto todos da família dormiam largados, eu tive a percepção de que enfrentaria insônia brava: a casa toda parecia resfolegar silêncio ameaçador, prenunciando esticar tal condição, durante horas e horas. E eu ali, buscando o canto da cama para tentar me proteger de fantasmas. Aos cinco anos, criança tem medo de tudo…
De repente, escutei rangido estranho vindo da porta da cozinha, e passos pesados se arrastando pelo corredor, em direção ao meu quarto. Primeiro, eles se detiveram na porta, para depois avançar…
Foi o momento de esticar o cobertor com os pés e a cabeça, transformando-o num saco de dormir retesado. Os passos estacionaram bem ao lado da minha cama, e minha respiração, pela carência de oxigênio e calor, tornou-se asfixiante…
A seguir, um grito horrível ecoou, e algo tentou puxar meu cobertor com força, emitindo mais gritos. Resisti calado, mãos e pés comprimindo as pontas da grossa manta. O receio era dar de caras com algo aterrador…
Aí, sem mais nem menos, o apavorante autor dos gritos e as sacudidelas violentas pararam, e então pude respirar mais aliviado, apesar de me manter abrigado dentro do coberto, àquela hora já empapado de suor…
Muitos minutos após, arrisquei olhar pela fresta do cobertor o canto da parede, e lá estava uma imensa mão branca gorda, candidamente refestelada ao lado do travesseiro. Cena idêntica aos caixas eletrônicos, para leitura digital. Incrível vê-la tão nítido, mesmo num quarto semi-escuro…
Volteei o olhar rumo à saída do quarto, confluência de acesso ao quarto dos pais, sala e cozinha. Mas duas outras mãos enormes, cores vermelha e verde, estavam suspensas em sentido contrário, irradiando pisca-pisca intermitente que nem um semáforo. Passar por elas seria difícil…
O jeito foi retroceder rápido ao abrigo do cobertor, maratona que registrou sufoco mais prolongado.
Transcorrida pelo menos uma hora, novamente “saí do cobertor” para checar a situação externa, e tudo agora parecia ter sido resolvido. Ou desaparecido, para ser mais exato: nada de mão pálida na parede e nem palmatórias luminosas no cruzamento do corredor.
Munido de coragem excepcional, abandonei a cama e fui correndo direto para o quarto dos pais, saltando no centro da cama, de surpresa. Minha mãe acordou na hora, mas meu velho só resmungou alguma coisa de modo sonolento, e virou bruscamente de lado.
Minha mãe percebeu meu medão, lógico, e tratou de me acomodar no meio dos dois, deixando-me agradavelmente protegido; podia agora observar tudo, sem risco de nada me atacar.
Logo minha mãe adormeceu, deixando a luz do abajur acesa. Foi quando visualizei uma figura baixinha, bem esquisita, posicionada ao lado da cama, querendo abrir a gaveta do criado. Pude escutar a gaveta deslizando a seguir várias vezes, e aquilo lá, sempre mexendo nos papéis…
Fosse o que fosse, duende, suponho hoje, por ser baixinho, esverdeado, brilhante e bem feio, sem traços definidos, braços curtos, ele fingiu não me ver. Ao virar a cabeça, deliberadamente evitava me olhar, voltando a mexer na mesma gaveta…
Sentado na cama, fitei-o provocadoramente por minutos para que percebesse estar sendo observado, mas ele se limitou a me ignorar nessa vasculhada noturna.
Olhando o alto das paredes (que não encontravam o teto), ainda vi vários vultos correndo ágeis por elas, parecendo homenzinhos magros. Gnomos, pelo que soube mais à frente, na idade adolescente. Corriam pra lá e pra cá, como se estivessem festando. Observei-os até sentir minhas pálpebras pesarem, sono chegando…
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Fui surpreendido, de manhãzinha, por meu pai me sacudindo para ir escovar os dentes; hora de levantar. Minha mãe já acordara,percebi ao sentir agradável cheiro de café fresco, vindo da cozinha.
O sol começara a se infiltrar pelas frestas da janela de madeira, e muitos pardais cantarolavam animados nas árvores próximas.
Quanto ao horrível duende, nem sei que fim levou, pois dormi sem me interessar mais pela sua presença no quarto. Ele e os homenzinhos sumiram!
Afinal, volto a dizer, senti-me amplamente protegido por estar no meio dos pais, que acordariam para me defender mediante algum perigo…
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Na cozinha, minha mãe ofereceu uma caneca de café com pão sem manteiga, instruindo-me para molhá-lo. O pão no café substituía o leite, difícil lá em casa…
Nunca entendi bem aquilo, a falta de leite, posto que meu pai trabalhava numa cooperativa. Tinha inveja dos meninos vizinhos; sempre exibiam copos cheios e mãos untados de manteiga.
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Ainda vivenciei outras situações escabrosas nessa velha casa-caixote, quase um ataúde deplorável em que vivemos por mais uns cinco anos.
Foi um alívio sair de lá, deixando pra trás tantas importunações macabras, a maioria sem explicações convincentes. Nem contei nada para meus velhos do que vi naquela noite: certamente, diriam estar vendo alucinações, comuns a qualquer criança fantasiosa.
Eis aí uma casa que não deixou a menor saudade…
João Carlos de Queiroz
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