Ainda que muitas lembranças registrem hoje certo esmaecimento, em função dos anos de espaçamento entre a fase infantil e a do ‘vai-com-Deus-que-já-vivi-tudo’, sempre é possível coletar resíduos interessantes no baú da memória.
Assim aconteceu ao rememorar os tempos de aluno do Grupo Quita Pereira, escolinha famosa na divisa dos bairros Vila Ipê e Edgar Pereira. Ficava ao lado de terreno gramado, onde a criançada batia bola sem parar. Imóvel simples, anexado lateralmente à área da fábrica de óleo de mamona, propriedade da família Pereira.
Minha mãe lecionava lá, escolinha administrada pela austera Yolanda Pereira. Pelo olhar severo que nos dirigia sempre, presumia estar continuamente pronta para desferir algum pito. Crianças malinas são desconfiadas de tudo…
“Dona Yolanda é uma boa pessoa, filho. Não tem maldade no coração” – cansei de escutar.
Deduzi que minha mãe dizia isso para não perder o emprego. Porém, depois de deixar o grupo, ela ainda continuou enaltecendo as qualidades humanas da impessoal diretora. Difícil acreditar nisso: afinal, qual é a dificuldade em abrir um sorriso simpático? Carrancas assustam crianças…
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O Grupo Quita Pereira foi fundado justamente para poder apoiar os filhos dos funcionários da fábrica. Constituiu-se quase numa creche, mas com tarefas e tudo o mais. Todos nós, independente de ser criança, tínhamos de acatar as normas do simples e aconchegante grupo.
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Especialmente, eu tinha predileção pelo cineminha que a professora improvisava regularmente no final da aula. Aí, infelizmente, bateu falha de memória, não lembro o nome dela…
Para nos entreter após o recreio, quando a turma traquina enchia a pança de mingau de fubá com pedaços de queijo, mais pão com salame, ela esticava um lençol branco na frente do quadro verde, não negro.
Fechada as cortinas, um pequeno projetor, de luz tímida, exibia dezenas de figuras estáticas. O comando da projeção ficava a cargo de pequena manivela, manipulada lentamente pela professora para esvaziar o rolo superior. Não se tratava de filme de silicone, mas de papel transparente, similar a plástico.
Cada quadrinho denotava mudanças de postura dos personagens (braços, pernas, etc.), produzindo ilusão de ótica de movimento. Filminhos bons…
Entretidos em assistir essas historinhas, por vezes repetidas durante o mês inteiro, torcemos para o lobo mau não devorar Chapeuzinho Vermelho e nem os Três Porquinhos. Torcida idêntica para Branca de Neve escapar das armadilhas maquiavélicas da bruxa, a cruel Rainha Madrasta – que nunca se conformou com sua formosura.
Um detalhe que recordo nitidamente: o calor sufocante da sala de projeção. É que os filminhos aconteciam no período vespertino, sem ventilador na sala, com tudo fechado. Nossos uniformes ficavam empapados de suor. Nunca ninguém reclamou disso…
Por João Carlos de Queiroz, jornalista