Montes Claros-MG, anos 70 – Marcaram a exibição do filme, uma história de pirataria marítima, para sexta-feira à noite, com início às 21h. Local: auditório da Escola Normal Oficial Professor Plínio Ribeiro. Todos os alunos do ginasial estavam convidados, disseram-nos ao final das aulas, pela manhã.
Edmundo, professor de inglês, foi enfático: “É um filme americano. Procurem traduzir sem olhar as legendas”. Já o professor de português, monsenhor Gustavo, austeramente cravado numa espécie de terno-batina, incentivou-nos a estar atentos aos deslizes de tradução do filme. Um dilema: olhar ou não olhar?
Dois bons mestres linguísticos, sem dúvida. Melhor assistir o filme de forma descompromissada, sem se preocupar em agradar nenhum deles. Na segunda-feira, diria o que desejavam ouvir…
O auditório da escola estava um tanto quanto decrépito, percebi ao me acomodar num assento frouxo e rangedor. Dois projetores IEC, 16 mm, posicionados lado a lado, pareciam tanques de guerra prontos para o combate.
Édson, o projecionista, checou várias vezes o volume do som e a nitidez da projeção numa tela de cinco metros, disposta em cima do palco. Fez isso antes mesmo de inserir a fita nos pequenos rolos da máquina cinematográfica, apenas ligando a lâmpada.
Daí a mais 10 minutos, um dos projetores foi acionado, expondo a maldade dos piratas. Numa abordagem, nem idosos foram poupados de ser degolados, ou lançados ao mar.
No geral, foi um filminho bem ruim, mas valeu pela animosidade de reencontro de alguns colegas, dispersos em outras turmas. Saímos de lá quase meia-noite, fazendo um barulho danado pelos corredores da escola, cujas vozes ecoavam perdidas nos pavilhões desérticos.
Agora, montado na minha velha bicicleta, restava encarar o frio junino até minha casa, do outro lado da cidade. Uma esticada e tanto até o bairro Edgar Pereira!
Sempre pedalando forte, desci a Avenida Mestra Fininha no embalo suicida de quem pensa que Deus está no comando, preocupado em me aconchegar logo na deliciosa caminha. O frio não ajudou, enregelando meus lábios e restante do rosto, além de insinuar dormência nas pernas à menor pausa no elétrico pedala-pedala.
Venci rápido o percurso entre as Avenidas Mestra Fininha e Coronel Prates, e adentrei em ritmo igualmente veloz por uma das ruas laterais à Praça Doutor Chaves, Matriz, descendo rumo à Vila Brasília pela Coronel Celestino. Nem sei como a bicicleta subiu tão rápido a íngreme rampa da ponte sobre o Rio Vieira…
Ofegante pelo esforço ciclista, percebi algo me acompanhando próximo, sem que pudesse vê-lo. Houve momentos em que essa coisa esquisita quase freou diante de mim, assustando-me pra valer. Diacho, sô! Não havia nenhum retardatário nas ruas, e a sensação opressora era de estar sendo perseguido numa cidade abandonada…
Pra piorar, ouvi risada rouca umas três vezes, e pude também jurar que a traseira de minha bicicleta foi abalroada por algo também em movimento. Mais pedaladas frenéticas me levaram a buscar refúgio longe dali, pois fantasmas povoavam a Vila Brasília, no meu entendimento.
Já perto de casa, respirei forte para buscar forças e acelerar mais o ritmo, apesar de ter chegado ao ápice da minha capacidade de atleta murcho. Novo abalroamento me desequilibrou, e senti que poderia cair no cascalho solto da escura rua em que ora trafegava. Amaldiçoei os governantes que não trocavam as lâmpadas…
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Foi mesmo uma noite sufocante, porém acabou bem, pensei ao finalmente adentrar na rua de casa, imaginando que aquilo que me perseguia, fosse o que fosse, jamais poderia passar do portão. De relance, depois de perceber o tufão ventoso de uma ultrapassagem pesada, pude ver um vulto se esgueirando rápido por uma das vielas ainda mais escuras das que terminei de transitar.
Pela primeira vez, minha magrela não teve um tratamento digno de descanso após cumprir longa jornada: joguei-a de lado no jardim, fechando veloz o portão. E corri direto para abrir a porta do alpendre, respiração disparada de medo. Pelo visto, nada veio comigo…
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TRANSCORRIDOS alguns meses, os professores anunciaram novo cineminha, também no horário noturno. Contive a boca para não dizer poucas e boas aos organizadores de um entretenimento tão horrível a partir do seu término…
Por João Carlos de Queiroz, jornalista