Amanda Queiroz discorre sobre o bicho-de-pé que não gostava de meninas em Pires e Albuquerque…

Lá pelas bandas do antigo distrito Pires e Albuquerque {atual Alto Belo}, as crianças da família Queiroz adoravam pisotear o chão fétido do chiqueiro de porcos. Tudo para pegar o famoso bicho-de-pé, revelam hoje. Os meninos logravam sucesso nisso; já as meninas, só frustração... Assim, visita após visita, Amanda e Graciema voltavam para Belo Horizonte, decepcionadas: o ardiloso 'bicho de pé' simplesmente não quis graça com elas. Sempre refutava a tenra carne infantil das irmãs. Amanda lembra apenas ter sentido uma leve coceirinha, certa vez. "Contudo, não passou daí...", diz, risonha. Vamos a mais detalhes dessa historieta curiosa, protagonizada por um dos seus atores mais divertidos...

Amanda Queiroz Maximiano, minha tia paterna, é mineira de raízes convictas, e de há muito curte vida feliz ao lado de filhos e netos, em Belo Horizonte-MG. No entanto, as lembranças da infância traquina ainda estão vívidas em sua memória prodigiosa, francamente intelectual. Tanto que guarda recordações detalhadas de fatos que testemunhou {e também participou} quando ainda era criança e pré-adolescente.

A irmãzinha Graciema, frisa, geralmente estava presente na maioria dessas quase aventuras, algumas de teor cômico. “Tínhamos muitos projetos na cabeça, e, na nossa ideia, o tempo era escasso para cumpri-los, exigindo pressa em tudo. Hoje, sei que nem imaginávamos o significado da palavra “tempo”, bem diferente na visão criança”, observa sorridente.

Amanda chega a resplandecer brilho reluzente  nos olhos ao rememorar o transcurso prazeroso daquela época. E explica o porquê do sentimento emotivo que a acomete quando retrocede à infância, período de muita gritaria expansiva pelos campos verdes de Pires (sítio de Vargem Alegre) e pelas ruas empedradas da pacata cidadela.

Naquele tempo, assinala, Pires sequer tinha luz elétrica, e os acessos eram limitados por terra, com bifurcações complexas. “Quem não conhecia, terminava se perdendo na zona rural. Utilizavam mais a via férrea para ir à sede do distrito e fazendas próximas, com longas caminhadas mata adentro. O grande temor dos viajantes era transpor o sombrio capãozinho, tido como mal-assombrado, repleto de lama pegajosa no período chuvoso. Alguns afirmam ter visto “coisas ruins” lá dentro, aparições inexplicáveis. Ninguém se atrevia a transpor o capãozinho solitariamente, apenas uns poucos maludos…” 

Antes do capãozinho, também citou, havia trechos que exigiam equilíbrio nitidamente atleta: transpor o Rio Verde, por exemplo, sobre pedras escorregadias, para acessar o barranco oposto, se constituía em desafio enorme. Se fosse à noite, então, um dos horários em que o trem passava por Pires, era ainda mais complicado. “Só sei que muita gente tomou banho gelado de rio antes de chegar em casa…”, revela a tia.

A mãe das meninas, dona Martiniana, morou por alguns anos na sede do povoado, numa casa à retaguarda da surrada estação ferroviária. A figura emblemática do pai, saudoso avô Zezé, era igualmente respeitada em Pires. “Meu pai tinha postura firme, de homem roceiro, objetivo. Um simples olhar dele era o bastante para saber que não estávamos agradando em alguma coisa. Já minha mãe, Martiniana, simbolizava a doçura em pessoa. Que saudades!”, exclama Amanda.

Seja em Vargem Alegre, na casa paterna, na roça de tio Geraldo ou nas ruas simplórias de Pires, Amanda e Graciema ficavam extasiadas a cada passeio. Andaram muito a bordo de carro de boi, curtindo a cantilena das rodas gigantescas. “A gente se divertia muito com aquele coro choroso… Ocorria de, às vezes, ensaiarmos uma cantoria paralela…”

Para as meninas, tudo era legal na sede do povoado, até mesmo o cheiro acre das vendas de chão batido, com linguiça defumada “muciça” (conforme denominavam) dependurada ao longo do balcão, sempre repleto de moscas. “Cansamos de ver os vaqueiros entornarem boas talagadas de pinga e, na sequência, mordiscar aquela linguiça pré-cozida, apimentada. Pareciam estar com apetite…”

Lá fora, emparelhados, rédeas presas num tronco comprido, meia dúzia ou mais de cavalos aguardavam os donos pinguços, passivamente resignados. “A simplicidade rotineira de Pires era o seu maior encantamento”, conclui a tia.

Já os passeios nos sítios familiares não ficavam atrás, e um dos projetos, tenazmente perseguido pelas meninas, era “pegar” bicho-de-pé (que, na verdade, é quem pega as pessoas, por meio da sola dos pés ou dedos).

Amanda e Graciema ficavam revoltadas porque apenas os meninos tinham êxito nessa empreitada. “Não por não tentar, pois pisoteávamos pra valer o chiqueiro de porcos, enfiando os pés no meio daquela sujeira fecal. Assim, “pegar” bicho-de-pé” terminou virando obsessão durante nossos passeios ao delicioso povoado. Mal chegávamos, íamos direto para uma da moradias* do famoso furador de pés”. {*chiqueiros, jardins com esterco, etc…)

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Foram muitas e muitas as tentativas de Amanda e Graciema para pegar o tal bicho-de-pé, com intermitente esfrega-esfrega dos macios pezinhos nos chiqueiros. Os próprios porcos estranhavam aquela movimentação tresloucada da turminha sapeca, mantendo-se arredios, num canto. Deviam imaginar que as irmãs eram birutas…

Minutos após esse autêntico amassa-uvas, as meninas saíam dali satisfeitas, cônscias de que, finalmente, o bicho Zé Coça estava incrustado na pele, e logo, logo elas iriam sentir a famosa coceirinha do invasor. Ledo engano…

“De volta a Bocaiúva, já nos preparávamos para curtir o bicho-de-pé em breve. Dias depois, tio Geraldo nos levava para BH, de carro. Porém, transcorridas semanas, nada desse danadinho dar as caras, manifestar pelo menos uma leve coceirinha..”.

Nessa expectativa, Amanda disse que pôde captar, numa ocasião, leve indício da presença do bichinho, mas acredita que foi apenas superficial. “Depois, sumiu de vez, que chato! Decididamente, ele não gosta de meninas!”, rememora às gargalhadas.

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Ainda hoje, Amanda sonha em pegar bicho-de-pé. O problema é que os anos já chegaram, e o projeto de coçar o vai e vem do bicho-de-pé ficou pra trás. “Nem tudo pode ser concretizado na vida, convenhamos. No nosso caso, o bicho-de-pé não vingou. E acredito que jamais vingará”, é outro comentário divertido da querida parente.

Ela ainda observou que o próprio povoado de Pires e Albuquerque, terra por onde andou pretensos lobisomens e toda tralha de figuras que assombram pessoas em passado longínquo, hoje se resume a um município pacato, após ser rebatizado de Alto Belo.

“O asfalto, por exemplo, surgiu nas ruas de Pires como uma mágica do desenvolvimento natural, implodindo os encantos naturais do lugar, ora perdidos numa área de resgate impossível. “Tínhamos, por lá, paralelepípedos diferenciados, espécie de lajedos enormes, de cor avermelhada. Tudo isso sumiu, é mesmo uma pena…”

A doce família da tia Amanda…

Amanda também diz sentir muita falta dos embarques na humilde Estação Ferroviária de Pires, utilizada pelos moradores para se deslocarem até Belo Horizonte-MG, a bordo do confortável Trem Azul, da R.F.F.S.A. “Como era gostoso aguardar a chegada do trem que vinha de Montes Claros!”

A partir dali, de Pires, recorda, começava uma viagem longa e deliciosa para quem se dirigia a Belo Horizonte, constituída de muitas paradas, por vezes durante a madrugada. “Relembro que as cidades pareciam dormitar à espera da locomotiva, e as pessoas se movimentavam nervosas pelas plataformas, temendo perder o embarque. Não dá para esquecer esse tempinho tão bom…”

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*A referida estação de Pires e Albuquerque foi demolida há décadas, sobrando apenas escombros e a linha férrea de bitola estreita, já em processo de ferrugem avançada.

Para a intelectual Amanda, estar ali, naquele ponto de embarque de tantos devaneios de sua fase criança e adolescente, ainda significa muito. “Meus pais costumavam dizer que a gente vive das saudades. Acredito que sim: se brincar, “escuto” até a locomotiva se aproximando da estação, mantendo firme marcha sincronizada e sibilando ruídos metálicos das rodas e freios nos trilhos, com buzinaço de alerta de sua chegada. Como fazíamos festa!”

Amanda concluiu, melancólica, que o Trem Azul “partiu de Pires para nunca mais retornar, levando sonhos e projetos de incontável número de pessoas…”.

Pelo que deixa evidente, o esquivo bicho-de-pé ainda permanece nos chiqueiros dos sítios locais à espreita de ferrar somente meninos e adultos, poupando sempre as meninas. “Acho que esse bicho é gay: as meninas o afugentam pra caramba!” – nova gargalhada.

Por João Carlos de Queiroz, jornalista

 

 

 

AMANDA QUEIROZ MAXIMIANOBICHO DE PÉmanchetePIRES E ALBUQUERQUE