Nos solavancos da rede ferroviária do Norte de Minas…

1979 – Inesquecível aquele embarque de trem em Janaúba-MG, estaçãozinha acanhada pela ausência da mínima estrutura receptiva aos passageiros. Pelo relógio, chequei, faltava um par de exatos minutos para o meio-dia, horário oficial da largada rumo a Montes Claros. Dali, o trem baiano se metamorfoseava no trem azul, subindo até Belo Horizonte.

Imóvel que nem um réptil desejoso de abocanhar alguma presa, a locomotiva resfolegou impaciência com buzinaço surpresa e tufos de fumaça preta, primeiro aviso de partida. O mal-educado som ecoou forte nas imediações do terminal ferroviário, assustando alguns. Irritados, outros tamparam rápidos os ouvidos para não ouvir possível repetição.

Sem me preocupar em proteger os tímpanos dessa agressividade acústica tão comum em estações ferroviárias, adentrei pelo vagão mais próximo à procura de assento. Por pouco não encontrei lugar, suspirando pela sorte de não viajar em pé. Nem quis arriscar a buscar outro assento nos vagões adiante…

O segundo e último aviso de partida irrompeu agora mais longo, momento em que as escadinhas de embarque sumiram com o fechamento das portas de aço. Janaúba começou a ser tornar figura amargurada de desfile lento nos meus olhos; partia aliviado daquela região castigada por tantos percalços, principalmente a seca…

Na verdade, adiantara meu retorno a Montes Claros justamente por causa dessa desolação geral, depois de presenciar o quanto aquele povo sofria no entorno de Janaúba e municípios à frente (Porteirinha, Mato Verde, Monte Azul, Espinosa…).

Peregrinei de ônibus por lá durante quase uma semana, visitando comunidades que resistiam bravamente às intempéries provocadas pela seca. Vi multidão de miseráveis agricultores e carcaças de animais prostrados em campos desnudos de qualquer vegetação promissora a algum tipo de cultivo alimentar.

Foi uma viagem sem motivo nenhum, a não ser conhecer mesmo os rincões esfomeados da causticante área mineira. Na minha cabeça, talvez saísse dali um livro, quem sabe?

Nesse perambular insosso, hospedei-me em pensões de última categoria, lugares em que a higiene passa ao largo dos cuidados gerais. O óleo de pequi vencido de um desses lugares ainda doía no meu estômago. Foi um vai-e-vem tresloucado ao banheiro…

Gostei de comprovar também o otimismo persistente de alguns sitiantes, que, mesmo ilhados naquele inferno de seca intermitente, mantinham ávidas esperanças por dias melhores. Como, nem imagino…

Até retribuí o sorriso cândido de um garotinho magrela, postado numa das cancelas de sítio próximo a Monte Azul. Ao passar por ali, o ônibus inundou tudo de densa poeira, transformando o menino num espectro amarelado. Mas deu pra ver ele acenando despedidas…

Imaginei qual alegria aquele menino ainda acalentava para acenar tão animado a um ônibus que encharcava diariamente a sua casa e a ele próprio de pó. O próprio virara um diabinho no meio do violento redemoinho provocado pelas rodas do ônibus!

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O chefe do trem começou a cobrança de passagens ainda no saracotear sambista dos trilhos em terras janaubenses. Estendi meu bilhete e ele se limitou a perfurá-lo com aquele alicate similar ao de unha.. Não disse uma só palavra. E saiu cobrando as passagens de outros, caneta presa à orelha direita…

A meu lado, uma senhora levava um bebê encharcado de urina, julgando-se pelo odor característico. “Tomara que seja só isso”, torci. A mulher sorriu simpática, expondo irregular gengiva negra e restos de dentes pontiagudos. Pelo mau-hálito, devia sentir muita dor…

Deixei a mochila na cadeira e pedi que ela cuidasse enquanto ia ao vagão adiante. A mulher voltou a exibir a sua arcada destituída de dentes, legítimo quadro de horror ao que poderia ser um bom sorriso… Forcei uma retribuição gentil.

No vagão dianteiro, pois o próximo era o carro dos Correios e a locomotiva, a situação de “conforto” não diferia muita da nossa: miséria por toda parte!

A criançada não estava nem aí para o incógnito destino dessa viagem aventureira dos pais, que resolveram deixar tudo pra trás, incluindo a pequena casa de sítio e alguns pertences, a maioria alquebrada pelo tempo de uso.

Muitas dessas crianças brincavam descontraídas pelo corredor encardido do vagão, ambiente fervilhante de conversas ininteligíveis. Várias devoravam bananas com farinha, e uma minoria dormitava nos braços dos responsáveis, sono de anjos. O trem continuou buzinando vitalidade para indicar que sonhar era facultado a pobres e ricos…

Não demorou muito e passamos por Capitão Enéas, marchando mais firmes para adentrar no município de Montes Claros. A composição, volta e meia, efetuava trancos seguidos em determinados trechos da ferrovia, e foi aí que lembrei dos avisos dos amigos sobre as péssimas condições da via férrea. Muitos descarrilamentos aconteceram ali…

Felizmente, chegamos ao terminal de Montes Claros sem problemas, após o comboio cadenciar sua marcha de forma elegante, como quem chega a um ambiente meio tímido…

Já fora do trem, que ganhou essa fama por ser o transporte usual de migrantes em debandada urgente da seca nordestina, fiquei sabendo que mais vagões seriam acoplados à composição “marrom” que chegara de Monte Azul.

Lá estavam à espera, também pude ver, os carros poltrona-leito, leito, restaurante e um de 3ª classe, que conheci em minhas viagens a Belo Horizonte. Depois rememoro mais sobre essas aí…

Os passageiros maltrapilhos passaram a conversar então sobre a sequência da viagem. Ouvi vários dizendo que a parada final seria em São Paulo, enquanto uns poucos disseram estar dispostos a tentar vida melhor em alguma outra cidade no percurso próximo.

Combinaram, enfim, aguardar a próxima partida do trem por ali mesmo, agora revitalizado em trem azul, de porte inegavelmente luxuoso. Acomodaram-se alegres ao longo da plataforma desértica, jogando suas tralhas a esmo; para eles, esperar por mais horas não importava coisa alguma…

Saí da velha estação de Montes Claros com as imagens dos aventureiros sertanejos relampejando na cabeça. Será que voltariam ao lar do sertão ressequido? Ou teriam mais sorte no futuro que tampouco imaginavam qual seria?

Lá de casa, não muito longe da estação, pude escutar, no final da tarde, os dois apitos de aviso do trem. Nada difícil traçar as cenas que se desenvolviam naquele terminal: além dos novos passageiros, meus companheiros de viagem (etapa Janaúba;/Montes Claros) também já deviam estar a bordo da composição. Quase poderia vê-los animadamente prontos para cumprir mais uma etapa da marcha frenética nas linhas.

O segundo e último aviso longo da locomotiva indicou que o início do filme – em busca da redenção existencial – teve início, mais uma vez, nas tardes quentes do Norte de Minas Gerais. Só torci para que os sonhos embarcados não se transformassem em pesadelos irreversíveis…

João Carlos de Queiroz